À procura de pertencimento (indicação de livro)

*História publicada originalmente no site da revista Vida Simples

De tempos em tempos, alguma palavra ou expressão fica em evidência, já notou? É como se ela viesse dentro de uma espécie de nuvem que paira sobre nós, retendo o inconsciente coletivo e trazendo definições para o espírito do tempo. Recentemente, tenho me deparado com vários debates sobre o “pertencimento”. Essa palavra – que significa coexistir harmoniosamente com o mundo – foi fisgada de uma dessas nuvens, tenho certeza.

Seja como for, a fina essência do tal pertencimento me foi apresentada por um viajante.

Conheci Flávio num retiro de autoconhecimento. Ele chegou me falando de um livro. Era o autor. E também o personagem principal. O Mundo que Pertenço, de Flávio Santos, conta a trajetória de um rapaz que busca seu lugar no mundo e, no meio do caminho, dá de cara com uma pedra enorme. 

O desejo de pertencer   

O autor do livro em Myanmar


É dentro de um caminhão encostado à beira de uma estrada, na Bulgária, que a história começa. Flávio acorda na cabine. Ainda é madrugada e lá fora faz muito frio. Já se passaram quase dois anos desde aquele fatídico dia na Indonésia, quando ele perdeu tudo o que tinha. 

Em seguida, descobrimos que o rapaz já vinha encarando duras verdades muito antes do incidente na viagem. Aos 11 anos, recomeçara a vida do zero junto com a mãe, deixando para trás uma sofrida existência que os dois não queriam mais engolir. 

Acompanhamos nosso personagem crescendo e vencendo etapas. Ele encontra barreiras na forma de privilégios sociais e, por vezes, em crises de autoestima e de identidade. Derruba todas. Chega à faculdade. Mas continua achando que viajar para o exterior é um privilégio ao qual nunca terá acesso.

Falta a Flávio a sensação de pertencer ao mundo.

Então, vive uma experiência na qual é apresentado a outros países. Mas sem que precise sair de casa! É o estopim. Ouve o chamado, recolhe as economias e vai viajar de verdade.  

Desamparo: a trapalhada que originou o livro

O autor fazendo sua refeição no caminhão de um novo amigo

Devoramos os primeiros capítulos à espera da trapalhada que deu origem ao livro. Mas o percurso até lá é tão encantador que, pelo menos eu, cheguei a esquecer que me joguei nessa leitura para me inteirar do caso de um bruto de um perrengue de viagem. 

Finalmente, quando a encrenca principal toma seu lugar no enredo, inicia-se uma sequência de movimentos como se as pessoas e as situações com as quais Flávio se depara fossem peças de um jogo de tabuleiro. E o objetivo desse jogo é impedi-lo de voltar para casa ou de desistir do sonho de viajar. A dinâmica é ele dizendo “sim” para o que a vida lhe apresenta, enquanto a ajuda vem de todos os lados, material ou não, e de gente nunca vista antes.

Flávio vai sendo amparado pela gratidão e hospitalidade de instituições para as quais passa a trabalhar como voluntário, e pelo amor daqueles com quem vai convivendo.  

Quando os recursos ficam mais escassos, uma refeição providencial significa mais um dia nessa viagem. E ela sempre aparece. Chega num prato cheio oferecido por um monge, uma família que abre espaço na mesa, um novo amigo, um desconhecido que compartilha o pouco que tem… 

Esclarecimento e empatia

A família que acolhe o autor na Indonésia

Flávio se diverte, mas também leva tremendos choques culturais. E os aceita. São oportunidades para desenvolver a flexibilidade como ser humano. O ritual festivo em que assiste à repulsiva morte de um animal cuja carne consagrada vai alimentar famílias pobres é, ao mesmo tempo, triste e elucidativo: nosso herói renasce esclarecido, armado de empatia. 

Apesar de conseguir se manter no jogo, lida com sentimentos desconfortáveis. Como a  culpa por ter se deixado cair em desgraça; a consciência de que já teve inveja dos outros; e a percepção de que quanto mais pobre é um país, mais solidariedade e fartura os cidadãos lhe entregam.

Espere para tomar suas dores quando ele é alvo de grosserias numa pizzaria holandesa ou num mercado belga. Ou para  acessar sua tristeza quando, acolhido num monastério, ele testemunha uma mãe miserável e arrasada colocar seu bebê nos braços de um monge e ir embora.

O poder do “sim”

O autor na imensidão da Capadócia

Ao longo da jornada, Flávio jamais recua. E não sabemos se ele faz isso conscientemente. Mas fica claro que a cada “sim” dito, o universo enigmaticamente se curva ao nosso herói e lhe entrega grandes coisas. Desde o chinelo avulso que aparece à beira da estrada e se ajusta ao pé direito, que precisava de um calçado; até o desfecho extraordinariamente amoroso de uma angustiante carona oferecida por um motorista suspeito.

Em determinado momento, as habilidades como engenheiro – sua  profissão de canudo – lhe abrem as portas de um trabalho. E ele se desconcerta com a consideração e a delicadeza recebidas dos colegas nativos, e nos emociona.

Flávio está inserido, pertencendo ao mundo. De uma forma como jamais havia pertencido até então.

Eventualmente, o leitor se confunde sobre onde está. É que essa história não é sobre destinos, mas sobre pessoas e a jornada. Mesmo assim, um mapa explicativo nas orelhas do livro dá conta de nos localizar. 

A bondade triunfa

O autor Flávio Santos no Monte Batur, na Indonésia.

Finalmente, o plano original de viajar por um ano transforma-se em 24 meses de uma trajetória de superação, com participação intensa em projetos voluntários em Myanmar e Indonésia e um passaporte carimbado de acolhimento e solidariedade em 27 países. Além de um bocado de diversão. 

Ao se entregar e dar chance às pessoas, vendo-as como fonte de bondade e segurança, e não de perigo, nosso viajante triunfa. No fim das contas, Flávio não explorou o mundo – como desejava fazer. Explorou a si mesmo. Viveu sim para si, mas também para os outros. 

Acima de tudo, voltou da viagem para contar alguns “causos” sobre como reagir ao que a vida nos oferece, mesmo quando ela nos oferece o estranho, o desconhecido, o inesperado…

Enquanto escrevia o livro, tornou-se instrutor de meditação e técnicas de respiração. E montou um projeto para falar às pessoas sobre o poder do pertencimento e das atitudes altruístas. E pensar que tudo o que ele procurava desde criança era uma coexistência harmoniosa com o mundo…

Se você o encontrar por aí, vai notar uma frase em birmanês tatuada em seu braço. Ela significa “Dê, mesmo se você tiver muito pouco para dar.”

*Entrevistei Flávio Santos, autor do livro, nesta live que pode se acessada aqui: https://youtu.be/JORPjfthKIc

Ilustração de Lu Otto, especialmente para esta história

 

Eu, caçador de mim

Eu e minha irmã Cris cantamos a canção Caçador de Mim, de Milton Nascimento, no palco de um Sesi nos final dos anos 80.

Eu tinha 12 anos, ela 16. Minha voz não é de cantora, mas quando se juntava à dela algo mágico acontecia.

Assim que entoamos a primeira frase –  “Por tanto amor, por tanta emoção, a vida me fez assim…” – a plateia começou a aplaudir. Cantamos até o fim.

Assim que entoamos a primeira frase –  “Por tanto amor, por tanta emoção, a vida me fez assim…” – a plateia começou a aplaudir. Cantamos até o fim.

Eu só sentia tudo com o coração e estava segura com ela do meu lado. Era para a Cris que eu olhava quando precisava saber como agir ou o que pensar quando comecei a deixar de ser menina-criança e precisava de referências. No meio da canção lembro-me de ter segurado a mão dela, que era delicada, e me sentir menos nervosa.

Nunca me senti nervosa em palco em frente ao público. Mas daquela vez  meu pai e minha mãe estavam na plateia.

Fui aprendendo essa canção aos poucos nos ensaios daquele ano, e não digo que foi sem sofrimento. Naquela idade de mudanças na vida de menina, eu já compreendia o que significa ser “caçador de mim”, ou como é “abrir o peito à força numa procura”. E já imaginava também o significado de “fugir às armadilhas da mata escura”.

Então eu cantei com verdade.

Quando a fita da gravação chegou, eu e minha irmã assistimos à apresentação um pouco envergonhadas, acho, com nossa aparência. Meninas tinham muito essa briga com a autoestima e com as tantas mudanças no rosto, no corpo, nos sentimentos.

Foi assim que, então, a Cris sumiu com a fita. Eu segui a orientação de deixar aquilo em segredo, né. Caçula fica quieta.

Desculpa, mãe. Nem você, nem ninguém vai ver a gente cantando Caçador de Mim.

Hoje, depois de terminar o trabalho, coloquei uma playlist para fazer o jantar com vibrações de serenidade e essa música estava lá.

Chorei. Eu estava cortando cebola para uma guacamole. Mas não foi culpa dela, não.

Chorei mesmo.

Eu choro pra caramba. Às vezes tenho até vergonha disso, mas é que sai água do meu rosto assim sem mais nem menos. E piora quando eu tento explicar.

Eu choro de feliz, de triste, de cansada, de fome, de raiva, de amor… Parece que tudo transborda de mim… Não acho que seja fraqueza.

Eu choro de feliz, de triste, de cansada, de fome, de raiva, de amor… Parece que tudo transborda de mim… Não acho que seja fraqueza. Pelo contrário. Meu irmão Marcelo é que fala assim quando me vê chorando: “ih, a lá a Ju”. Às vezes eu choro só pra relaxar. E aí equalizo as emoções.

Chorei porque hoje compreendi a canção ainda melhor.

Ouça Caçador de Mim clicando aqui.

 

 

 

O dia em que almocei com os músicos do Midnight Oil

Almocei com Peter Garrett quando eu tinha 20 anos.

Peter é um músico australiano, um dos mais famosos ambientalistas do mundo e vocalista da banda australiana de rock Midnight Oil. No final dos anos 80 e início dos 90 a banda fez um baita sucesso. Seu rock ativista clama pela proteção do meio ambiente e pela defesa dos direitos do povo aborígene. Só que nessa época não tínhamos tanto acesso ao inglês como agora. Então cantávamos as músicas da moda sem entender o que significavam.

Se você surfava nesse tempo, com certeza curtia Midnight Oilporque o som da banda era famoso entre os surfistas. Por isso, os “oils” também eram representantes do surf rock.

Os “oils” !

Aos 20 anos eu estagiava num jornal, e Curitiba, minha cidade, estava numas de ser a cidade ecologicamente correta do Brasil. Um dia o secretário de redação correu na minha direção e pediu que eu fosse almoçar na Universidade Livre do Meio Ambiente com o prefeito e uma tal banda estrangeira: iriam inaugurar algo ecológico.

Cheguei lá e dei de cara com Peter Garrett no buffet de feijoada. Eu ainda não era vegetariana e não ligava uma coisa à outra, mas Peter era. Almocei com ele e os caras da banda me comunicando em mímica sem saber o que estava perdendo. Ele era um ídolo pra mim, mas pelas razões erradas. Eu gostava da batida da música. Só isso.

Muito antes do almoço

Aos dez anos eu tinha um caderno de anotações dedicado ao que eu achava que deveria mudar no mundo. E tudo isso aí que a gente tá falando hoje sobre plástico demais, lixo demais, poluição demais, maltrato aos animais demais, desrespeito à ancestralidade demais…tudo isso estava anotado no meu caderno. Estava anotado também o nome de pessoas e empresas que eu achava que um dia poderiam ajudar. Era um fantasia de criança.

Aí as pessoas riam um pouco quando viam meu caderno… Eu fui crescendo, tomando vergonha e deixando ele pra lá. Era da Tilibra.

Blue Sky Mine e a mina de amianto azul

Assim, quando cheguei aos 20 anos, sentei ao lado de Peter Garrett, o cara que escreveu Blue Sky Mine (abaixo). Eu pulava ouvindo a canção sem saber que ela se refere ao tenebroso caso da mina de amianto azul Wittenoom, na Austrália. Milhares de pessoas que trabalharam por lá expostas à substância entre os anos 40 e 60 ficaram doentes ou morreram. Na canção, Peter diz que os interessados mentem aos acionistas, cruzam os dedos e pagam àqueles que produzem as verdades – enquanto lucro chega às alturas.

Na canção Beds Are Burning, talvez a mais famosa do Midnight Oil, ele fala sobre devolver terras para os aborígenes dizendo que a hora de pagarmos o aluguel, a hora de pagar a nossa parte, chegou. “Vocês cortaram todas as árvores, envenenaram o céu e o mar, tiraram tudo de bom que havia no solo” – é como começa outra canção que denuncia a destruição do ambiente em nome da ganância.

 

Eu almocei com Peter Garrett e não falei nada.

 

A lama da Vale

Por fim, me lembrei desse almoço quando a montanha de lama da Vale desceu matando e destruindo. Minha menina de dez anos, escondida dentro de mim, pensou que se tivesse anotado o telefone do Peter Garret, ele faria uma música tão grandiosa sobre essa lama assassina… Tão grandiosa quando Blue Sky Mine e tantas outras.

O careca de dois metros atuou no parlamento, no Ministério do Meio Ambiente e no Ministério da Educação, da Infância e da Juventude da Austrália anos depois.

Se eu tivesse ficado amiga do Peter Garrett, ele escreveria uma música e denunciaria essas coisas todas que estão acontecendo aqui. Mas diria que ” a música pode servir de trilha sonora, mas são as pessoas que fazem a mudança”.

A música pode servir de trilha sonora, mas são as pessoas que fazem a mudança”.

Aos 10 anos a gente sonha.
Entre os 10 e os 20, a vida bota umas armadilhas para testar se a gente quer mesmo seguir o sonho.
Na maioria das vezes a gente esquece o sonho.
E às vezes só se liga nos sinais quando já é tarde.
Eu almocei com Peter Garrett e não aproveitei nada.
Droga.

 

 

Um segredo da Guerra Fria embaixo da terra na Lituânia

Se alguém me dissesse que eu estava no meio do cenário de um filme de magos e fadas – um Senhor dos Anéis ou algo assim – eu acreditaria.O interior da Lituânia é isso mesmo. Tapete verde, paisagem misteriosa e meio mágica pontilhada por vilarejos, lagos e florestas de coníferas.

O silêncio dessas terras não foi quebrado nem quando movimentos sinistros ocorriam no subterrâneo por 50 anos.

Vista aérea do Parque Nacional Žemaitijos na Lituânia
Vista aérea do Parque Nacional Žemaitijos na Lituânia: quem imaginaria que aí embaixo morava um perigo?

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A história de um símbolo nostálgico da Guerra Fria

Eles estão nos semáforos em quase todos os cruzamentos de pedestres em Berlim.

Andando em verde, paradinhos em vermelho, os Ampelmännchen são as luzinhas em formato de homenzinhos de chapéu que – quando acesas – dão a autorização pra você cruzar a rua ou não.

A verdade é que essas figuras fofas – conhecidas como Ampelmännchen – não se tratam de um capricho, mas de um plano bem pensado.

A história dos Ampelmännchen está intimamente ligada à divisão e à reunificação de Berlim.

Rebobina!

Em novembro de 1989 derrubava-se o Muro de Berlim. A imensa barreira de concreto ilhou a capitalista Berlim Ocidental no meio da Alemanha comunista (a RDA) por décadas. Sim, Berlim ficava dentro da República Democrática Alemã, o lado da Alemanha que seguia o regime comunista. E o Muro era o símbolo mais evidente e literal do que era a divisão do mundo naquela época em dois blocos: o comunista e o capitalista.

A queda daquela cortina de concreto representava um passo gigante para o fim da Guerra Fria e para reunificação de Berlim e das duas Alemanhas.

E os bonecos de trânsito que vemos hoje na Berlim unificada, ainda, têm participação especial nessa história.

O mobiliário urbano na Alemanha Oriental

Tudo começou  1961, quando o psicólogo Karl Peglau apresentou sugestões para novos símbolos de semáforo em Berlim Oriental. Sua invenção eram luzes de pedestres na forma de homenzinhos de chapéu, com nariz e até barriguinha proeminente. Nascia o Ampelmann. Ou os Ampelmännchen.

Como psicólogo, inventor engenhoso e estrategista inteligente, Karl sabia do efeito emocional que essas figuras provocariam.

É que estamos mais propensos a confiar em alguém que se parece conosco ou em quem gostamos.

Ou seja, carismáticas figuras realmente parecidas com a gente nos fariam prestar mais atenção nos sinais de trânsito. Muito melhor do que fariam os tradicionais e impessoais homenzinhos palito.

Então… a fofura dos Ampelmännchen não era capricho? Não. Era um plano bem pensado!

As sisudas autoridades da Alemanha Oriental gostaram da ideia e implantaram os sinais com o desenho de Karl.

Houve murmúrios de que o chapéu do Ampelmann fosse um agradinho às autoridades do regime comunista, uma vez que o acessório era bastante usado pelos representantes da Alemanha Oriental.

Será?

Ícones nostálgicos da Guerra Fria

Anos mais tarde, quando o Muro de Berlim já era só escombros, nasceu uma mentalidade coletiva de se livrar de um certo espírito retrógrado que acompanhava os símbolos do regime comunista.

Assim, veio a eliminação progressiva de várias referências à Alemanha Oriental. Mas já era tarde para eliminar os Ampelmännchen, que haviam cativado todos os lados do país. As pessoas agora gostavam dos homenzinhos do semáforo. E os Ampelmännchen tornaram-se figuras cultuadas.

As autoridades se renderam àquela figuras e viram nelas mais razões para perpetuá-las e apresentá-las ao Ocidente do que para destrui-las.

Teve até estudo acadêmico: uma pesquisa feita na Universidade Jacobs em Bremen (Alemanha) compara a eficácia visual dos sinais do Oriente e do Ocidente e registra que os Ampelmännchen não ocupam apenas seu lugar como um ícone nostálgico da Guerra Fria – ele realmente tem vantagem visual sobre os manjados sinais utilizados na Alemanha Ocidental.

Com a Alemanha reunificada e a eficácia dos Ampelmännchen comprovada, pareceu boa ideia instalá-los por toda a nova Berlim em vez da apagá-los.

Mais do que uma ação para a segurança no trânsito, acender os semáforos de toda Berlim com esses homenzinhos de luz foi um grande e inusitado passo para unir o que Guerra Fria havia separado.

Berlim Oriental: AmpelmannBerlin on Visualhunt.com / CC BY

 

 

Viajante Independente: LIÇÃO Nº 1

Em abril de 1917, Lênin desembarcou de um trem na Estação Finlândia, em Petrogrado (hoje, São Petersburgo), na Rússia. Após um longo exílio, ele vinha liderar uma das mais dramáticas revoluções da história mundial.

Eu também cheguei na Rússia nessa mesma Estação Finlândia. Só que quase 100 anos depois, como uma viajante independente e sem pretensões – porém tendo cometido um erro básico que me deixara sem dinheiro e na condição de, digamos, analfabeta. Sem amigos à espera e sem um só rublo no bolso para negociar, eu também estava condições de me comunicar. Havia me esquecido que, ao atravessar a fronteira finlandesa e chegar na Rússia, o alfabeto era o cirílico – um sistema alfabético de escrita sobre o qual eu não tinha o mínimo conhecimento.

Eu estava em apuros.

Eu estava viajando sozinha.

Essa história é sobre como viagens solo (e suas burradas) podem nos fortalecer para os duelos diários, além de ensinar lições muito valiosas sobre nós mesmos

Quando você for viajar sozinho:

LIÇÃO 1. VÃO TENTAR TE CONVENCER A DESISTIR

Os outros farão de tudo para te convencer a não ir adiante. Uma vez que você faz um movimento – e esse movimento é ousado – você mostra que sempre há gente se arriscando a realizar coisas apesar das dificuldades.

E isso incomoda.

É que se juntos não fizermos nada, não precisaremos lidar com nossos possíveis insucessos, não é?

Bom, foi por amor que meu irmão sugeriu que eu voltasse e fizesse ‘um concurso público’ quando um dia comuniquei que iria para a Estônia e não para o aeroporto tomar o voo de volta pra casa.

Também por amor, amigas me enviavam mensagens enquanto eu viajava ressaltando a falta que minha presença fazia. Mas quer saber? Quando voltei, a maioria delas estava ocupada lidando com a própria vida.

Mas eu me cansei mesmo foi de encontrar quem, sem motivo aparente, desencoraja o outro a desbravar fronteiras.

Mas eu me cansei mesmo foi de encontrar quem, sem motivo aparente, desencoraja o outro a desbravar fronteiras.

Certo inverno, numa troca de trens para a Escandinávia, encontrei um brasileiro recém-formado em medicina e orgulhoso dos muitos carimbos em seu passaporte. Ele havia estado na Noruega num tempo escuro e frio! Então, no momento, ele era o meu herói!  E dele eu queria todos os conselhos de viajante que pudesse conseguir. Seu assunto principal era ele mesmo e suas façanhas ao norte. E seus conselhos se concentravam nas desgraças que poderiam me abater – ser deportada e sofrer com solidão, frio e escuridão… Era hora dele voltar para o Brasil, mas queria continuar on the road .

Ele me dizia “não vá, vai ser difícil”. Mas, gente… Por quê?

TAMBÉM VI ISSO NUM FILME

No filme Livre , baseado em uma história real, Reese Whiterspoon faz o papel de Cheryl Strayed, uma solitária viajante que busca a cura para um trauma pessoal peregrinando. Ela atravessa a Pacific Crest Trail, trilha de 4265 quilômetros que cruza os Estados Unidos desde o México até o Canadá. Cheryl faz amigos no caminho. Um deles é Greg. Em certo momento, Greg quase planta na mente de Cheryl a dúvida determinante: continuar ou desistir? É incrível como ele faz isso quase sem querer. E sutilmente.

AMIGO DA ONÇA OU INOCENTE?

Os mais observadores percebem: o personagem de Greg anda lidando com os próprios monstros e frustrações durante a aventura. E não é que em determinado ponto vem realmente a notícia de que ele desistiu? Pois Cheryl continuou.

O escritor Steven Pressfield – autor do livro que deu origem ao filme Lendas da Vida (com Matt Damon e Will Smith) – nos fala sobre um inimigo que nos impede de realizar aquilo que mais desejamos.

Esse inimigo é nossa própria Resistência.

Em seu livro A Guerra da Arte , ele disseca a Resistência mostrando diversas de suas faces.

E uma das faces da Resistência é a culpa que colocamos nos outros – enquanto o que nos prejudica é o peso que damos àquilo que os outros dizem.

“Quando vemos os outros começando a viver suas vidas autênticas, ficamos loucos se não estivermos vivendo a nossa própria vida real. Os indivíduos que se sentem realizados em suas próprias vidas quase nunca criticam o próximo. Quando falam, é para oferecer encorajamento.”
(Steven Pressfield, em A Guerra da Arte)

 

Como NÃO visitar Cognac, na França

Na cidadezinha de Cognac, no sudoeste francês, o aroma da mais nobre das bebidas destiladas paira no ar. É verdade. Deu para perceber logo que saltei do trem na pequena estação ferroviária do lugar. De olfato aturdido logo de início, adentrei Cognac com uma missão: apurar para um guia de viagens transformadoras qual das destilarias de conhaque locais ofereceria o melhor tour com degustação.

E esse era o prenúncio de uma pequena confusão. 

Eu havia saltado do penúltimo trem a passar por ali antes de o país inteiro ter sua atividade nos trilhos interrompida por tempo indeterminado. Greves de trem são comuns na França. Dentro de poucas horas uma parada nacional deveria eclodir. E a recomendação do meu editor era bem clara:

“Desça na estação, faça todos os tours pelas destilarias de conhaque. Faça fotos. E se mande de lá a tempo de pegar o último trem e chegar a algum lugar onde você possa se instalar antes do caos tomar conta da França.”

Ele se referia ao caos do transporte. Mas o caos iminente era bem outro.

“DESCUBRA QUAL CASA DE CONHAQUE TEM O MELHOR TOUR.

A ordem vinha acrescida de um pedido ousado:

“Faça TODOS os tours”.

Quando se entra em Cognac, percebe-se que os muros da cidade são enegrecidos. Culpa de um fungo que se nutre dos vapores liberados pelos depósitos de conhaque, a bebida que um dia o escritor Victor Hugo chamou de “elixir dos deuses”. O tal elixir – de cujo vapor minhas narinas também já vinham se nutrindo ao primeiro contato com a cidade – foi descoberto no século 16. E sua técnica de produção foi sendo refinada ao longo do tempo.

Hoje, é assim: o vinho de seis cépages (variedade de uvas) rigorosamente regulamentadas é duas vezes destilado e levado a envelhecer por um período de 5 a 40 anos em barris de carvalho. Só então vira conhaque.  A madeira nobre é fundamental na maturação e refinação da bebida.

Todas as destilarias promovem visitas guiadas seguidas de degustação – os tais tours de conhaque que eu deveria apurar.

MAAAAASSSS…

Há muitos anos, houve um atentado envolvendo uma bomba dentro de um armário para bagagens numa uma estação de Paris. Logo, a França aboliu esse tipo de depósitos de mala. E eu, que estava em Cognac só para uma breve visita de um dia, não tinha onde guardar meus pertences.

Só me restou pedir ao garçom de um bar em frente à estação que me deixasse encostar minha mochila num cantinho por algumas horas. Com certa má vontade, ele permitiu.

Rumo ao brind…ops, trabalho!

Segui, sob olhares curiosos dos clientes do bar, para a destilaria Martell. 

Em seu tour, a mais antiga maison de conhaque do mundo, nos apresenta os principais processos de produção e abre a adega do mestre com mais de mil amostras da bebida. É a única a permitir uma espiada na empolgante linha de engarrafamento automatizada, onde os vidros são preenchidos, fechados e embalados com precisão espantosa. Antes da degustação, há um passeio por um gabarre, o tradicional barco usado antigamente para transportar barris de conhaque pelo rio Charentes.

Anotei tudinho e, de câmera em punho, fui impedida de bater fotos das instalações. Mas nem liguei porque no final da visita a degustação deixou tudo muito mais simpático e agradável.

No segundo copo esqueci a cara feia do garçom do bar. No terceiro perdoei pra sempre o tratamento ríspido da mademoiselle que baixara meu punho na hora da foto.

Definitivamente, essa tinha grandes chances de ser a CASA DE TOUR COM O MELHOR CONHAQUE.

Porta afora, segui rumo à Otard, instalada dentro de um castelo de 1494 – o Château de Cognac, onde nasceu François I, que foi rei da França durante parte do século 16.

Lá, uma turma metida em fantasias medievais me apresentou o lugar e, finalmente, me levou aos aposentos mais profundos do castelo, onde o conhaque é produzido e armazenado.

Estive rodeada por curiosidades como a desejada edição especial de 1972, limitada a 2,5 mil garrafas, e a preciosidade de cor rubi e ouro Baron Otard Extra de 1795!

Ali na Otard, as paredes estão completamente tomadas pelo tal fungo que se alimenta do vapor do elixir dos deuses. Por ano, esses minúsculos seres consomem o equivalente a 23 mil garrafas de conhaque. CERTAMENTE, isso é um tour com fungos bêbados!

Estava bem perto de encontrar o MELHOR TOUR COM CASA DE CONHAQUE.

Imaginei o editor orgulhoso de mim…


Degustei um copo pra mim e um copo pra ele.
E depois um copo para o santo que estava me ajudando na  missão.

Saí pela porta dos fundos, de onde eles despejam os visitantes depois de degustados.

Segui saltitante para a casa Rémy Martin, certa de que ia encontrar o… MELHOR CONHAQUE COM CASA DE TOUR!

Edições exclusivas e raridades que passam dos milhares de euros – mesmo que separadas dos mortais comuns por vitrines e redomas – são o trunfo do tour na Rémy Martin. A visita a essa casa que produz conhaque desde 1724 passa por corredores que expõem garrafas cheias do delicioso líquido variando do dourado vibrante até o âmbar luminoso e o mogno intenso.

Ao longo do passeio fomos seduzidos por palavras como sedoso, aveludado, acetinado – que se referem à textura de edições raríssimas, como a Centaure de Diamant, engarrafada num recipiente que imita uma pedra preciosa.

Obviamente, não foi dessa leva de raridades que provamos – eu e um animadíssimo grupo de americanos – no final do tour, quando já babávamos por um gole da tão bem afamada bebida.

Sem problemas. Entre um gole e outro brindamos à missão, que, perto do fim, me permitira encontrar na Rémy Martin a tão esperada… CASA DE MELHOR CONHAQUE COM TOUR!

Ufa! Dei um abração de agradecimento no monsieur que nos guiou e me empurrei com força sobre a pesada porta de saída, que, ops, não era tão pesada assim.

No jardim da Rémy dei uma olhada no mapa e dali tracei meu caminho até a Henessy , enquanto refletia sobre a necessidade de comprar tênis menos pesados para viagens assim.

Só em Cognac é que percebi que meu par de sapatos de viagem realmente parecia feito de chumbo.

Ainda deu tempo de chegar à porta da próxima destilaria, casa, maison de conhaque! É que fui trotando pelas ruas. Para chegar rápido. Precisei jogar os braços pra cima a fim de reivindicar minha vaga no último tour da tarde. “Permettez-moi de participer à cette visiteeeee”, gritei com meu francês bom.

Ninguém se opôs.

A Henessy tem o que parece ser o tour mais elegante de todas as casas. De gabarre (barco) e cobertos de mimos – como a degustação com canapés-evita-pileque – seguimos para o lugar onde os mais desejados e envelhecidos conhaques da marca são mantidos.

O tour que eles apelidam de “viagem ao paraíso” nos leva ao um espaço povoado por garrafas com jeito de obra de arte e de cores flutuando entre o mel e o âmbar avermelhado.

Inteiramente tomada por Cognac – guardando aquela simpática cidade aqui ó, no lado esquerdo do peito – anotei que a missão chegara ao fim. Aquele era…O MELHOR CONHAQUE COM TOUR DE CASA!

Pulei para fora do barco da Hennessy – dando Au Revoir à tripulação, que não sei bem se ria comigo ou de mim.

ADEUS

Atravessei as ruas de Cognaca apressada calçando os tênis de chumbo.

Sem fôlego, invadi o bar onde encostara e mochila. Precisei abrir os braços no ar para retribuir tamanha gentileza daquela gente boa, o que fiz bradando “Mon sac à dos, s´il vous plâit”. (significa “minha mochila, por favor, pessoal!”)

O gerente continuava com a mesma cara de poucos amigos de quando nos conhecemos naquele início de dia.  E permanecia enxugando um copo com pano de prato (?!). Deu uma queixada no ar na direção do trem, que despontava no horizonte se aproximando da estação.

Eu precisava organizar minhas ideias:

1) catar a mochila no canto;
2) jogá-la nas costas;
3) dar tchau para o garçom simpático;
4) vencer 50 metros, 2 lances de escadas e1 corredor subterrâneo;
5) acertar a plataforma;
6) acertar a seção da plataforma no qual o vagão da segunda classe estacionaria.

Tudo isso num cenário que girava.

Eu consegui.

Estatelei-me no banco do trem e caí no sono.

Fui acordada tempos depois, não me lembro onde, pelo homem do chapéu – aquele que passa recolhendo os bilhetes e cutuca nosso ombro quando estamos dormindo.

Sonolenta, me ajeitei para alcançar meu passe de trem e o que encontrei preso ao meu punho? A câmera fotográfica. E uma única foto:

 

Pois é. Esqueci de fazer as fotos.

 

Touros na espanha

Touro à vista!

Essa história não é só sobre os míticos touros espanhóis, mas sobre nossa luta para largar a telinha do celular

É ele! É ele! De olhos vidrados na janela do ônibus, em algum lugar entre Valladolid e Valência, na Espanha,  notei ao longe a figura que há tempos eu buscava.

Não dava pra gritar “motorista, eu vou descer!”

Assim, num golpe rápido saquei a câmera e registrei um dos touros solitários que se elevam como sombras imponentes no horizonte espanhol. Eu finalmente via um.

Os touros são a estampa mais óbvia dos souvenires de viagem do país.

Mas você já viu um desses com os próprios olhos? Quem são eles? O que fazem lá?

Polêmica

Nos anos 80, painéis publicitários que remetem à tradição espanhola mais polêmica – as touradas – foram fincados pelos campos da Espanha fazendo propaganda do jerez Osborne.

Jerez é um vinho fortificado típico do país.

E os painéis da Osborne, recortados em formato de touro, podiam ser vistos de longe – especialmente por quem viaja pelas rodovias.

Acontece que, por volta de 1990, a Espanha passou a proibir grandes cartazes comerciais em suas estradas nacionais. Assim que as autoridades ordenaram botar abaixo os chifrudos gigantes da Osborne, parte da população que havia se afeiçoado à ideia, protestou.

Não houve de jeito de derrubar os touros. Pelo menos não todos eles…

Os que restaram de pé tiveram as referências à propaganda removidas. E pintados de negro.

Permaneceram, então, espalhados, belamente fincados pelas terras espanholas.

Eu vi! E vi porque eu estava olhando o mundo lá fora.