Se me perguntassem qual a diferença entre a era dos viajantes offline e a dos hiperconectados? Estar verdadeiramente presente.

“Pega esse livro e vai com ele”, disse minha amiga Milla me entregando o guia de albergues – grandalhão feito Bíblia –  e já listando as últimas recomendações sobre como viajar pelo mundo. “Sem ele você não vai se achar, aí tem endereços e os telefones de que precisa”, alertou. Na semana seguinte eu estufava a mochila com 5 quilos de guias de viagem, mapas e livreto de horários de trem e barcos – tudo em papel

Atlântico atravessado, assim era a rotina: a cada desembarque, uma visita ao escritório de turismo da cidade –  lá diziam onde comer, dormir e ir. Não existia aplicativo de reservas, então podia acontecer de você chegar num lugar e não ter mais cama.Teria que usar o guia e seu cartão de telefone público – que nem sempre era internacional – e torcer para que do outro lado da linha entendessem seu inglês decorado: “i´d like to make a reservation”. 

Boa parte da viagem era gasta na batalha da hospedagem. E assim a gente ia caindo em muitas roubadas — como no albergue de Budapeste cujo dono vendia drogas ou no de Cracóvia, que me trancou para fora debaixo da neve porque passei do toque de recolher ]hoje as avaliações online atualizadas diminuem esses riscos]. 

Cyber cafés e mapas em papel

Cyber Cafés não serviam café, mas computadores com internet cobrando uma taxa. Então você tinha que ponderar: matar saudades da mãe ou gastar 2 euros? Foi num desses o israelense Eli me apresentou o então revolucionário Google –  mas o mundo das pesquisas online ainda era tão novo que nem sempre digitar “budget accommodation” ou “where to eat in…” nos levava a um lugar decente. Tudo era surpresa. Aliás, Eli viajava sem câmera para “não perder o foco da viagem”. 

Lia-se muito pelo trajeto. Porque ler aplacava a solidão do viajante sem celular. Estantes improvisadas em redutos viajantes mantinham-se vivas com o ir e vir de títulos. Conheci Les Miserábles de Victor Hugo cruzando a Ucrânia. Ficou numa pensão da Crimeia, de onde levei On The Road – o clássico beatnik de Jack Kerouak atravessou o Mar Negro comigo e ficou na Turquia. 

Amizades analógicas

Foi num albergue encravado nos Alpes que uma geração de viajantes retornou de seus países por vários invernos, reforçando a amizade nascida nas conversas ao lado da lareira e durante refeições preparadas na cozinha coletiva. O tempo dessa turma não era gasto na busca de selfies perfeitasaliás, essa expressão nem existia e às vezes a gente só virava a câmera e a foto dava certo ou não. No lugar mais bonito do mundo  ninguém enlouquecia para sair bonito na foto ou para provar que estava lá. Definíamos nossos destinos no bate-papo e rabiscando os mapas em papel à luz da fogueira lá fora, respirando o ar gelado da montanha. O wi-fi nem existia.

Voltei ao mesmo destino por muitos anos até o grupo rarear. Notei surgir uma nova e silenciosa geração de viajantes absortos com aquela  tela na palma da mão e fones no  ouvido, pulando de uma conversa para outra com alguém que não estava ali, fazendo selfies… O canto da lareira do albergue alpino, antes tomado por jogos de tabuleiro, sustenta agora laptops, tablets e carregadores portáteis. Outro dia, testemunhei uma discussão: o aplicativo da viajante apontava 10 minutos até um museu, mas a recepcionista sugeria outra rota, mais contemplativa, com duração de 20. “Por que me perder se posso seguir o GPS?”. Por quê?

Enfim, sob a luz da tecnologias, tudo ficou diferente. Mas não vim aqui para falar mal, não. Sem elas ainda seria desafiador demais organizar uma viagem e lidar com imprevistos. Haja coragem para sair pelo mundo às cegas [ou offline]…Tecnologia liberta e traz flexibilidade.

Se me perguntassem qual a diferença entre a era dos viajantes offline e a dos hiperconectados? Estar verdadeiramente presente. Hoje, aparece alguém no whatsapp, no Facebook ou no Instagram oferecendo, por um instante, a ilusão de que você não está sozinho na viagem. Mas você está. E na solidão você tem que dar seu melhor para realizar a necessária tarefa de passar de um estágio a outro.

* História publicada originalmente na Revista Vida Simples.

*  Você também pode escutar essa história em formato de podcast acompanhando a ilustração feita exclusivamente pela artista Lu Otto, uma leitora que mora em Los Angeles e gosta de ilustrar o que lê. Ela leu esse texto e o desenhou.

Como era viajar offline

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