Como era ser viajante independente na era pré-Google?

“Pega esse livro e vai com ele”, disse minha amiga brasileira M.J., uma viajante experiente naqueles tempos. Ela me entregou um guia de albergues grandalhão feito uma Bíblia e ele pesava bastante, mesmo com as páginas feitas em papel jornal. M.J, estava me ensinando a como viajar pelo mundo. “Sem ele você não vai se achar; aí tem endereços e os telefones de que precisa”.

Naquele tempo, não existiam as buscas no google e a tecnologia para pesquisar viagens não era assim grande coisa.

LONELY PLANET 

Houve um tempo em que viajávamos sem internet. E mesmo quando ela chegou, houve também um tempo em que viajávamos sem internet móvel. Pois é, a gente não tinha celular, nem sites com sistemas de reservas de hospedagem como booking ou airbnb… Ter uma lista de acomodações em mãos é que nos dava o norte. Muitas vezes o destino era decidido de acordo com a possibilidade de hospedagem. 

Os guias de viagem eram compilados de experiências vividas por viajantes que vieram antes e catalogaram o caminho para nós. Lonely Planet era um dos principais e suas edições em papel eram dificilmente encontradas em português. O casal de ingleses que começou montando essa verdadeira bíblia viajante foram pioneiros de um mercado de livros, revistas e guias de viagem a partir de um hobby que inventaram ainda nos anos 1970: eles gostavam de organizar suas viagens para mostrá-las aos amigos.

Tradicional versão do guia da Lonely Planet para viajar barato e independente na Europa.

Sem um guia de viagem Lonely Planet na mão, muitas pessoas não teriam nem começado a pensar em viajar de forma independente. 

Assim, na semana seguinte em que ganhei o guia de albergues da amiga, estufei a mochila com mais 5 quilos de guias de viagem, mapas e livretos de horários de trem e barcos por toda a Europa e Oriente Médio – tudo em papel. E parti. Cuidava daquela minibiblioteca ambulante como cuidava da minha vida. Era a minha bússola

O QUE SE FAZIA CHEGANDO AO DESTINO

A cada desembarque, a mesma rotina: uma visita ao escritório de turismo da cidade —  lá, eles abriam um mapa em papel e iam nos dizendo onde comer, onde dormir, o que visitar, como se locomover pela cidade… Bom mesmo era quando o escritório de turismo ficava já na estação ou no aeroporto. Às vezes, ficava numa praça principal ou em outro ponto de referência. Aí era preciso já desembarcar com alguma noção de como se locomover até lá. Por isso, era importante ter o próprio mapa, que normalmente vinha impressos nos guias de viagem que carregávamos.

Assim, a operação de chegada era umas das que causava mais insegurança no viajante solitário e independente — afinal, imagine chegar num lugar desconhecido em horário em que os principais serviços ao turista estivessem fechados

COMO ERA A HOSPEDAGEM

Boa parte da viagem era gasta na batalha da hospedagem. Não existiam aplicativos de reservas, então ficava por nossa conta descobrir e reservar a cama do dia, ou a do dia seguinte. Para quem viajava sem planejamento, esse era um dos principais desafios.

Às vezes podia acontecer de você chegar num lugar e não ter mais cama no hotel, pensão ou albergue [hostel]. Teria que usar o guia para encontrar outro lugar, e também seu cartão de telefone público – que nem sempre era internacional. A cada país ou cidade, o sistema de telefone podia ser diferente e aceitar ou não seu cartão. Do outro lado da linha alguém atendia e qualquer que fosse o idioma, o ideal era usar o inglês decorado: “I´d like to make a reservation”.

E assim a gente ia achando bons lugares ou caindo em muitas roubadas — como no albergue de Budapeste, cujo dono vendia drogas; ou no de Cracóvia, que me trancou para fora debaixo da neve porque passei do horário [curfew] – lá tinha toque de recolher.

REGRAS E BED BUGS

A maior parte das acomodações eram albergues. No início, eles faziam parte de uma rede internacional de albergues, cheia de regras e que só atendia a quem tivesse uma carteirinha previamente expedida. Depois começaram a surgir os albergues independentes, que poderiam ser um paraíso ou lugares sujos e mal cuidados — acertar era parte da experiência viajante. Foi num albergue independente nos Alpes suíços que realizei meu sonho de morar na montanha. O lugar era tão incrível, que acabei ficando não por semanas ou meses, mas por anos. Mas isso é outra história. 

É importante lembrar que o principal modelo de acomodação nos albergues eram os dormitóriosquartos coletivos que podiam contar com 3 até dezenas de camas. Alguns eram mistos, outros não. Uns eram silenciosos e cheios de regras; outros, pura bagunça. Havia aqueles que ofereciam lençol e travesseiro, e aqueles que cobravam pela roupa de cama.

Albergue bem arrumadinho em Rotterdam, Holanda. (foto de Marcus Loke para Unsplash)

 

Alguns albergues permitiam que usássemos nossos sacos de dormir e aí que entrava o bed bug [ou percevejo]. Esse bichinho mordia viajantes e causava alergia e infecções de pele – às vezes febre, como aconteceu comigo. O bed bug costumava pegar carona e viajar nos sacos de dormir e roupas  — e assim ele se instalava no colchão do próximo albergue a ponto de em alguns momentos do fim do século 20 e início do 21 tornar-se um verdadeiro terror nas redes de albergues da Europa.

LOCKERS 

Lockers eram os armários para bagagem estrategicamente colocados nas estações de trem ou de ônibus, e nos aeroportos. Eles permitiam que o viajante independente pudesse largar a bagagem enquanto saía pela cidade para procurar acomodação ou para simplesmente fazer uma visita de um dia antes de partir para outro destino. Logo, o custo dos lockers também era computado no planejamento do dia: eles podiam custar de centavos a dezenas de euros ou dólares.

Lockers em Berlim: que alívio deixar as coisas aí e sair pra passear (Bekky Bekks Unsplash)

A França era um lugar difícil para fazer essa manobra de visitar cidades por um dia e partir para outro destino. É que lá os lockers eram proibidos devido a um atentado: no passado, alguém colocou bombas em alguns deles e o resultado levou à proibição dessa praticidade no país inteiro.

Nesse caso, um viajante independente podia até ter a sorte de encontrar alguém que guardasse sua bagagem [como eu fiz em Cognac, num passeio repleto de confusões]. Por outro lado, numa ilha dinamarquesa, me deparei com lockers enormes e caros – não pensei duas vezes em deixar minha bagagem dentro de um e não trancá-lo [o lugar era conhecido pela segurança]. Quando voltei, 12 horas depois, lá estavam meus pertences intactos. 

A IMPORTÂNCIA DO MAPA EM PAPEL

Uma das cenas mais comuns: a gente não tinha GPS nem celular. (Nick Seagrave Unsplash)

Definíamos nossos destinos no bate-papo e rabiscando os mapas em papel. Eles faziam o “cruzar fronteiras” parecer um jogo de tabuleiro e isso era divertido, desafiador e empolgante – além de informativo. Foi assim que um dia eu estava em Copenhagem e saí traçando uma linha que me levou a Roma, para então atravessar a Grécia, entrar na Turquia, pular para a Síria e estacionar no Líbano.

Não havia GPS e o tempo de viagem variava bastante de acordo com o tipo de transporte que encontrávamos para cruzar cada linha rabiscada no mapa.

COMO NOS COMUNICÁVAMOS COM A FAMÍLIA [OU NÃO]

No filme A Praia, com Leonardo di Caprio, ele finalmente se comunica com a família usando a internet discada de um cyber café após meses vivendo em uma comunidade de viajantes numa ilha tailandesa. Era mais ou menos assim mesmo. Semanas podiam se passar sem que nos comunicássemos com a família ou os amigos, uma vez que a internet não existia em todo lugar e as ligações internacionais eram bem caras. 

Cyber cafés existiam em alguns lugares e cobravam o equivalente a 1 a 5 euros por 30 minutos de uso do computador dom internet. Era quase o suficiente para mandar um email para os pais avisando que estávamos vivos ou usar o messenger ou msn, uma ferramenta de comunicação instantânea pelo computador. Aliás, era bem comum receber de tempos em tempos um email vindo de casa com o assunto “onde está você?“.


Ah, smartphones não existiam e muito pouca gente tinha celular..

Muitos viajantes devem se lembrar da EasyEverything, uma rede de cyber cafés com jeito todo moderninho e quantidade enorme de computadores [como essa mostrada aí no filme do Di Caprio]. Ela existia em cidades como Munique, Berlim, Barcelona… Nessa última, geralmente as unidades eram frequentada por batedores de carteira que se valiam da nossa distração para levar as mochilas depositadas no chão ou atrás do encosto das cadeiras.

Telefones públicos podiam ser usados com cartão, mas esses nem sempre valiam se comprados em um país e usados em outro. Com a variação de tarifas, também era difícil saber quando os créditos acabariam [e às vezes eles acabavam antes da gente completar a reserva da acomodação]. Privilegiados podiam ligar para casa por meio de um código da Embratel, a cobrar,  e mudava de número a cada país. E esse código não era tão fácil de ser descoberto.

Enfim, toda essa dificuldade, tornava a viagem uma grande aventura solitária e um desafio diário, uma vez que planejar caminhos sem comunicação certa era a condição.  

LIVROS = COMPANHEIROS DE VIAGEM 

Lia-se muito pelo trajeto. Ler aplacava a solidão do viajante sem celular. Estantes improvisadas em redutos mochileiros mantinham-se vivas com o ir e vir de títulos. Conheci Les Miserábles, de Victor Hugo, cruzando a Ucrânia. Ele ficou numa pensão da Crimeia, de onde levei On The Road [o clássico beatnik de Jack Kerouak atravessou o Mar Negro comigo e ficou na Turquia].

Viajantes lendo (foto de Rathish Gandhi Unsplash)

E SOBRE AS FOTOS? 

O tempo do viajante não era gasto nas milhares de tentativas de selfies perfeitas — aliás, essa palavra nem existia —  e nenhum lugar se esforçava para ser “instagramável”.  Às vezes, a gente só trocava a posição da câmera e a foto, de trás para frente, dava certo ou não. Mesmo no lugar mais bonito do mundo ninguém enlouquecia para sair bonito na foto ou para provar que estava lá.

Selfie: hábito que não existia, portanto não tirava a nossa paz (foto de Cristina Zaragoza)

E AS PASSAGENS?

Sem a tecnologia dos aplicativos e da internet móvel, pesquisar passagens baratas era um pouco mais complicado. Passes de trem pela Europa facilitavam a vida para quem pretendia descer no destino que bem entendesse e ofereciam descontos para menores de 25 anos. Depois, surgiram as companhias de ônibus fazendo parecido.

Promoções de passagens de último minuto eram anunciadas nas estações e às vezes um trajeto longo chegava a ser oferecido pelo equivalente a 10 euros. E quando as companhias aéreas de baixo custo [low cost] surgiram, o mundo ficou ainda menor – embora fosse parte da jornada viajar por terra observando a troca de cenário.

 

  • Você também pode escutar essa história em formato de podcast acompanhando a ilustração feita exclusivamente pela artista Lu Otto, uma leitora que mora em Los Angeles e gosta de ilustrar o que lê. 

 

Como era viajar offline

Se me perguntassem qual a diferença entre a era dos viajantes offline e a dos hiperconectados? Estar verdadeiramente presente.

“Pega esse livro e vai com ele”, disse minha amiga Milla me entregando o guia de albergues – grandalhão feito Bíblia –  e já listando as últimas recomendações sobre como viajar pelo mundo. “Sem ele você não vai se achar, aí tem endereços e os telefones de que precisa”, alertou. Na semana seguinte eu estufava a mochila com 5 quilos de guias de viagem, mapas e livreto de horários de trem e barcos – tudo em papel

Atlântico atravessado, assim era a rotina: a cada desembarque, uma visita ao escritório de turismo da cidade –  lá diziam onde comer, dormir e ir. Não existia aplicativo de reservas, então podia acontecer de você chegar num lugar e não ter mais cama.Teria que usar o guia e seu cartão de telefone público – que nem sempre era internacional – e torcer para que do outro lado da linha entendessem seu inglês decorado: “i´d like to make a reservation”. 

Boa parte da viagem era gasta na batalha da hospedagem. E assim a gente ia caindo em muitas roubadas — como no albergue de Budapeste cujo dono vendia drogas ou no de Cracóvia, que me trancou para fora debaixo da neve porque passei do toque de recolher ]hoje as avaliações online atualizadas diminuem esses riscos]. 

Cyber cafés e mapas em papel

Cyber Cafés não serviam café, mas computadores com internet cobrando uma taxa. Então você tinha que ponderar: matar saudades da mãe ou gastar 2 euros? Foi num desses o israelense Eli me apresentou o então revolucionário Google –  mas o mundo das pesquisas online ainda era tão novo que nem sempre digitar “budget accommodation” ou “where to eat in…” nos levava a um lugar decente. Tudo era surpresa. Aliás, Eli viajava sem câmera para “não perder o foco da viagem”. 

Lia-se muito pelo trajeto. Porque ler aplacava a solidão do viajante sem celular. Estantes improvisadas em redutos viajantes mantinham-se vivas com o ir e vir de títulos. Conheci Les Miserábles de Victor Hugo cruzando a Ucrânia. Ficou numa pensão da Crimeia, de onde levei On The Road – o clássico beatnik de Jack Kerouak atravessou o Mar Negro comigo e ficou na Turquia. 

Amizades analógicas

Foi num albergue encravado nos Alpes que uma geração de viajantes retornou de seus países por vários invernos, reforçando a amizade nascida nas conversas ao lado da lareira e durante refeições preparadas na cozinha coletiva. O tempo dessa turma não era gasto na busca de selfies perfeitasaliás, essa expressão nem existia e às vezes a gente só virava a câmera e a foto dava certo ou não. No lugar mais bonito do mundo  ninguém enlouquecia para sair bonito na foto ou para provar que estava lá. Definíamos nossos destinos no bate-papo e rabiscando os mapas em papel à luz da fogueira lá fora, respirando o ar gelado da montanha. O wi-fi nem existia.

Voltei ao mesmo destino por muitos anos até o grupo rarear. Notei surgir uma nova e silenciosa geração de viajantes absortos com aquela  tela na palma da mão e fones no  ouvido, pulando de uma conversa para outra com alguém que não estava ali, fazendo selfies… O canto da lareira do albergue alpino, antes tomado por jogos de tabuleiro, sustenta agora laptops, tablets e carregadores portáteis. Outro dia, testemunhei uma discussão: o aplicativo da viajante apontava 10 minutos até um museu, mas a recepcionista sugeria outra rota, mais contemplativa, com duração de 20. “Por que me perder se posso seguir o GPS?”. Por quê?

Enfim, sob a luz da tecnologias, tudo ficou diferente. Mas não vim aqui para falar mal, não. Sem elas ainda seria desafiador demais organizar uma viagem e lidar com imprevistos. Haja coragem para sair pelo mundo às cegas [ou offline]…Tecnologia liberta e traz flexibilidade.

Se me perguntassem qual a diferença entre a era dos viajantes offline e a dos hiperconectados? Estar verdadeiramente presente. Hoje, aparece alguém no whatsapp, no Facebook ou no Instagram oferecendo, por um instante, a ilusão de que você não está sozinho na viagem. Mas você está. E na solidão você tem que dar seu melhor para realizar a necessária tarefa de passar de um estágio a outro.

* História publicada originalmente na Revista Vida Simples.

*  Você também pode escutar essa história em formato de podcast acompanhando a ilustração feita exclusivamente pela artista Lu Otto, uma leitora que mora em Los Angeles e gosta de ilustrar o que lê. Ela leu esse texto e o desenhou.

Os Anjos do Caminho

A porta do metrô se abriu. Do lado de fora ela me olhava fixamente, como se estivesse me esperando. Ignorava os empurrões da multidão e não tirava os olhos de mim. Cabelos brancos, cachorro no colo. Acenou e fez um gesto como se dissesse “siga-me”.

Tentei acompanhá-la transpondo as escadas, atrevessando espaços estreitos me desviando das pessoas… Eu não tinha escolha, estava assustada e não conhecia ninguém. Entrei naquela por falta de opção e pra valer.  Ela dobrou uma, duas, três esquinas e então…parou!  Apontou para o final de beco.

— Allez! – disse aquela mulher de figura tão francesa… [segundo o estereótipo que a maioria de nós confere aos franceses, né]. “Allez” é o nosso “vá”. E lá estava ele… O lugar onde eu ia me instalar em segurança, o  único espaço com uma cama disponível na cidade aquela noite na cidade. Era um albergue nos limites de Paris. Se o mundo já era desconhecido para mim, imagina um bairro afastado em Paris. Passava das 21h, fazia frio e chuviscava. Tudo escuro já.

Viajante de primeira viagem

Essa foi a largada para minha primeira grande viagem. Eu vinha de uma hora em pé dentro de um metrô em pane nos subterrâneos de Paris. Nunca tinha feito uma viagem internacional sozinha. Penava metida num casaco pesado, trazendo a mochila estufada com o desnecessário.

Eu era inexperiente. Chorei discretamente encostada num dos apoios de alumínio do vagão, morrendo de calor e medo. Eu quis desistir de continuar viajando, talvez tivesse dado um passo maior que a perna. Até que a porta se abriu na última estação nos limites da cidade e ela não deixou abandonar o sonho.

Não faço a mínima ideia de que, ela era, de como se posicionou justamente na porta de onde eu sairia e de onde vinha aquela certeza de que eu precisava de ajuda. Mas nunca me desencantei da crença de que ela estava ali por mim.

Metrô em Paris (foto de Lee Banchflower unsplash)

Protetores desconhecidos

Meu primeiro anjo do caminho, a senhora do metrô, sumiu sem que eu pudesse agradecer. Foi há muitos anos. Sem seu estranho incentivo, eu não conheceria os outros anjos. Como as resilientes mulheres da família de Jurga, que me acolheram em sua terra lituana recuperada da condição de fazenda coletiva soviética; ou seu generoso marido Martynas, criado perto de uma base secreta de mísseis nucleares e cuja avó perdeu seu recém-nascido num trem para a Sibéria num difícil, quando a Lituânia era dominada pela União Soviética.

Também não teria esbarrado no dr. Al-Jatib quando explorava imprudente o campo de refugiados palestinos de Shatila, Líbano. Anos antes, um jornal publicara a saga de um médico para livrar centenas de pessoas da mira das falanges armadas que invadiram Shatila em 1982. Agora eu estava lá, numa missão. Não estava exatamente confortável – sentia-me sutilmente observada. Eu não procurava por ninguém, mas por acaso avistei um homem muito parecido e logo me lembrei da história publicada no jornal. Ele vinha caminhando na direção contrária e… não é que era ele mesmo? Careca, moreno, gordinho…meio grandalhão. Era ele, sim, e eu o reconheci logo que nos cruzamos. Ficamos amigos. Al-Jatib me ciceroneou às histórias que eu buscava pela região e mudou o curso da minha vida.

Ah, teve o curandeiro que salvou minhas panturrilhas magoadas no Caminho de Santiago. Como remédio de verdade, me receitou desapego do passado. Como é que ele sabia?

Roar me hospedou nas ilhas Lofoten, Noruega. Mal-humorado como ninguém [note que ‘roar’ significa ‘rugido de leão’ em inglês], me ensinou a pescar e a limpar peixe. No país mais caro do mundo, me garanti por 10 dias com o que o Oceano Ártico oferece de graça. Roar apreciava viajantes reais e afugentava [mesmo!] turistas reclamões ressentidos com as durezas fora zona de conforto. Certamente, era um um terapeuta disfarçado…

Ilhas Lofotone (foto de Mike Palmowski)

Valentina cuidou de mim nas 32 horas de uma intimidante viagem até a Ucrânia. Ela apareceu quando uma multidão me engoliu ao entrar sozinha num trem da era soviética e me protegeu até que eu chegasse bem ao meu destino. Durante o trajeto, me alimentou a partir de um sacola de onde não parava de sair comida, e me explicou como as coisas funcionavam para visitantes nesse país ainda pouco acostumado, naquela época, a receber forasteiros. Sem sua ajuda, eu não teria conseguido cumprir minha missão de ir até Chernobyl, o lugar do maior acidente nuclear já provocado pela humanidade, por um motivo que é outra história.

E a Ludmila? Essa “protetora” me alugou um quarto sem água em Yalta (Crimeia) com muita má vontade – não confiava em estrangeiros. Após quatro dias estava enfiando biscoitos e suco na minha mochila e sorrindo com dentões dourados ao certificar-se de que eu estava no ônibus correto quando parti para Odessa.

Teve a motorista de ônibus no interior da França que notou meu banzo [sabe? a melancolia de saudade de casa] pelo retrovisor. Parou no acostamento, abriu a porta automática:“saia, caminhe colina acima por 4 km e você terá uma surpresa.”. Segui as instruções. Entrei num vilarejo medieval resguardado por brumas. Naquela noite, me recuperei no quarto de um castelo só pra mim.

 

Mario, que fugiu da guerra em Moçambique e passou para a África do Sul pela compaixão de uma oficial da imigração, reconstruiu a vida e me ofereceu sua visão genuína e tocante do mundo enquanto me apresentava o país.

E assim, os desconhecidos foram me ajudando a passar de fronteira em fronteira.

Os laços que me unem a cada um deles se desfazem delicadamente com o tempo. Mas nunca serão esquecidos.

Esses amigos são anjos no caminho. Aparecem nas viagens. Ensinam, transformam e vão embora.

 

 

Valentina! Mais um anjo do caminho.

Na velha estação de trem de Varsóvia havia duas categorias de plataforma: as renovadas, com placas coloridas e instruções em inglês; e as antigas, onde as direções apareciam em polonês com letras apertadas em painéis preto e branco. As da primeira categoria estavam reservadas aos trens que iam para o Oeste, rumo  a cidades como Berlim — onde, já no desembarque, o viajante ocidental sentiria-se seguro como em casa. De acordo com a minha passagem, eu deveria me apresentar nas da segunda categoria.

Comparei  as instruções em polonês e ucraniano, no verso do bilhete, com as placas na estação. E saí fazendo meu caminho pelo movimento nervoso das escadas e corredores subterrâneos da Warszawa Centralna.

Mais um lance de degraus acima e… pronto! Meu ponto ficava numa longa plataforma cinzenta, de concreto, tomada por uma multidão zangada que se acotovelava carregando malas e sacolas de náilon, dessas de feira, cheias até quase transbordar.

Viagem de trem

Na plataforma, todos lutavam por um lugarzinho esbravejando, reclamando, conversando num idioma com o qual eu não tinha a mínima afinidade. Aquela era a área reservada aos trens de grande distância que partiam para o Leste e percorriam rotas ainda pouco estruturadas para o turismo. Eu era a única pessoa ali sem poder de comunicação, e viajando até a Ucrânia por lazer e curiosidade.

Acanhada, atrapalhando o movimento e tomando empurrões, fiz as contas: dois ou três fossos nos separavam lá daquelas plataformas novinhas, tão organizadas, tão modernamente europeias, ponto de partida para as seguras e descomplicadas Berlim, Viena, Paris… Minha sensação de pertencimento estava no Oeste, e mesmo assim eu escolhia o obscuro lado contrário, aquele para onde aventureiros normalmente não optavam por ir sozinhos.

A recusa em seguir

Sempre fui movida a medo — e ainda não descobri se isso é bom ou ruim. Quando reconheço o medo, curiosamente, eu não corro na direção oposta, mas ao encontro dele. E luto até que um de nós saia vitorioso e a inquietação acabe.

Às vezes eu ganho, muitas vezes quem ganha é o medo.

Daquela vez, escolhi fugir dele sem nem lutar.

Dei as costas para a plataforma e voltei todo o caminho, abrindo espaço entre estranhos e percorrendo novamente o corredores subterrâneos, escadas e saguão, até sair aflita pela pesada porta principal da Estação Central de Varsóvia. Ao erguer o rosto para puxar fôlego e ar puro, bati os olhos no maior arranha-céu da Polônia.

O Palácio de Cultura e Ciência de Varsóvia é um dos prédios que Stalin espalhou pelos países soviéticos para demonstrar a força da URSS

O Palácio da Cultura e da Ciência de Varsóvia (Pałacu Kultury i Nauki – PKiN), construído quando o país vivia sob a influência da União Soviética, inspira tanto deslumbre quanto ressentimento. A Polônia o recebeu como um  “presente” da URSS, assim como outros países do bloco comunista também receberiam seus arranha-céus stalinistas. Hoje, uma brincadeira popular entre os moradores de Varsóvia insinua que o mirante do PKiN tem a “melhor vista da cidade porque é o único lugar onde o edifício não pode ser visto.” A fascinação por histórias como essa era o que me impulsionava a viajar – especialmente pelo Leste, a despeito de todas as dificuldades que uma jornada pela região, naquela época, poderia envolver.

O conselho do pai

De um telefone público entre o Palácio e a estação, liguei para casa, no Brasil, e comuniquei a meu pai que desistiria de tudo. Estava com medo de viajar sozinha. E ele me apoiou! “Deixa pra lá então, e volta pra casa que assim é mais fácil”, disse.

— Acha que eu sou boba, pai? – bati o gancho do telefone e entrei de volta na estação.

Deu tempo de ouvir o apito soando enquanto eu subia novamente as escadas de acesso à plataforma do trem Varsóvia-Kiev. Tapei os ouvidos e assisti ao gigante de ferro avançando lenta e vigorosamente pelo fosso. Rangia feito coisa velha que era.

Engoli seco. O estômago embrulhou.

Agora, um zumbido tocava dentro da minha cabeça e meu corpo tremia. Era mesmo um trem da era soviética indo para a capital da Ucrânia. Por que mesmo eu queria insistir num país pouco habituado a turistas e que só falava línguas que eu não dominava?

A  multidão me engoliu.

Todos tentavam entrar no trem ao mesmo tempo e, uma vez lá dentro, reivindicavam qualquer lugar onde sentassem. Não havia ordem. Os passageiros se empurravam, gritavam e atiravam as sacolas nas prateleiras. Um homem de quepe e apito berrava comigo em russo – ou seria ucraniano? –  apontando impaciente para minha passagem e bolsa.

Eu não conseguia pensar direito. Tinha a mente turva. Não entendia os gritos, os gestos e nem os números impressos no bilhete e nas poltronas. Se houvesse um lugar para mim ali, já estaria tomado.

Então veio o som das portas dos vagões se fechando. Blam!

Uma a uma. Blam!

Logo seria a vez da porta do meu vagão e aí o trem partiria comigo lá dentro.

“Não quero!”. Corri para a porta e iniciei a descida pela escadinha de ferro. Aquela história de viajante solitária e corajosa fora apenas uma mentira que contei por muito tempo – e terminava agora.

A ajuda inesperada

Nunca cheguei a pisar no chão da plataforma. Em vez disso, uma força me sugou de volta para dentro do trem.

A porta se fechou. Blam! Ouvi o ferrolho. O trem iniciou seu deslize.

Arrastada em marcha à ré vagão adentro, entregue ao destino e sem chance de reação, fui socada numa grande cabine vazia com dois sofás-cama. Olha, até que nada mal…

Pude então ver o rosto da mulher de cabelos pretos longos, minha algoz. Ela me soltou e correu para fora da cabine. Bateu a porta e me trancou lá dentro!

Do lado de fora, meteu-se numa conversa apoquentada com o funcionário do trem. Deu um último grito (acho que foi mais para um tipo de ordem) e entrou na cabine.  Ajeitou-se com pressa e ansiedade, tomou fôlego e se apresentou.

“Sou Valentina. Você está segura agora”.

Proteção mágica e desconhecida

O doce inglês com sotaque estrangeiro de Valentina me acalmou naquele mesmo instante e pelas próximas 20 horas de viagem até Kiev. Sentávamos uma de frente para a outra, cada uma num sofá.

Durante o trajeto, Valentina dividiu comigo melancia, pão doce, iogurte e linguiça tirados de um farnel que parecia não ter fundo. Emprestou xale e travesseiro quando me deitei vencida pelo cansaço. Fez a tradutora quando passaram o bilheteiro, os guardas de fronteira e a moça do chá, que nos abastecia de bebida quente em copos de vidro com elegantes suportes de metal trabalhado. Notava-se que os suportes eram antigos. —  Soviet times! –, disseram Valentina e a moça do chá juntas quando percebi que a base de um deles ainda levava a marca de uma foice e um martelo.

Conversamos sobre família – ela me mostrou algumas fotos – e coragem de sair pelo mundo fazendo escolhas solitárias que dão medo. Ela me ensinou a como agir na Ucrânia e a como encarar as primeiras dificuldades de comunicação e cultura quando pisasse em Kiev.

De onde vinha essa ajuda?

Valentina foi uma ucraniana que notou minha aflição de longe, desde a chegada na estação. Compadecida, me ofereceu um lugar em sua cabine exclusiva e convenceu o guarda do trem de que esse era o melhor jeito de se tratar uma estrangeira assustada, perdida e com a poltrona tomada.

Nos despedimos para sempre pela janela de um táxi. Valentina deu três tapas no teto do carro, liberando o motorista para me levar em segurança ao conjunto de apartamentos-colméia onde estudantes estrangeiros – especialmente chineses – se hospedavam na cidade. Não trocamos contato.

Por um mês, consegui explorar a Ucrânia sozinha.

Como eu já disse, é encarando o medo que termino por vencê-lo e me torno a mais… valente!

Algo me diz que dessa vez, o sucesso da missão teve a misteriosa mão de uma amiga.

Valentina foi mais um anjo no meu caminho.

Medo vencido (ilustraçao de Lu Otto)

Viajante Independente: LIÇÃO Nº 2

Uma vez que você começa o movimento, não há lugar para a preguiça.

É preciso fazer deslocamentos. E eles podem ser cansativos tanto para o corpo quanto para a mente.

Você sobe e desce de trens, ônibus, aviões… Se acomoda em um lugar, mas então logo precisa partir. Repete o processo de procurar hospedagem, compreender o trajeto, ler cardápios esquisitos, comunicar-se em outra língua, enfim reaprender como a banda toca a cada próximo destino

Cansa lidar com imprevistos e com a bagagem a carregar.

 

Perder-se é divertido, mas também cansativo quando se está só – pois é preciso manter o estado de alerta constante.

Eu relutei em contar, mas lá vai: no meio de uma praça em Istambul tem um obelisco de – simplesmente! – 3500 anos e que um dia foi trazido do templo de Karnak, no Egito, para a Turquia na maior cara de pau! Esse obelisco viu corridas de bigas, execuções públicas, lutas de gladiadores, eventos com imperadores…Viu as tretas do Império Bizantino por uns 1000 anos e os pipocos do Império Otomano por uns 400.

Mas num dia de chuva em Istambul, eu passei reto por ele correndo com fome na direção de um McDonald´s. Como se aquele obelisco milenar fosse um poste da Copel! (Copel é a Companhia Paranaense de Luz, e eu sou filha de um engenheiro que ajudou a construir essa empresa)

Vergonha, né?


É que eu não aguentava mais!!!
 Istambul é tão valiosa em informações que acabei exausta mental e fisicamente. Só queria comer num lugar onde não fosse preciso usar o cérebro para escolher algo do cardápio.

Pronto, falei! E a imagem aqui é antiga porque no esgotamento eu não fiz a minha própria foto.

Livro A Coragem de Ser Imperfeito

O atrevimento de se expor – O que aprendi com Brené Brown, autora de A Coragem de Ser Imperfeito

Conhece aquela sensação de estar tudo bem e, de repente, a lembrança de ter se revelado demais invade sua mente e você, de vergonha, quer se enfiar debaixo das cobertas? Eu conheço.

Este livro (no foto) que eu folheio com as unhas azuis foi escrito por uma autora que admiro – Ana Holanda, de Como se encontrar na escrita. Eu chorei bem na frente dela no dia em que ela escreveu a dedicatória e me contou que me abriria uma porta por notar minha potência como pessoa que escreve. Depois, eu passei a noite me enfiando debaixo das cobertas por ter arrancado minha armadura naquela hora. Conhece aquele autoconstrangimento? É como vergonha alheia — mas como é da gente mesmo, a sensação fica um pouco pior.

Tenho passado minha vida toda remoendo as atitudes em que arranquei a tal armadura e fiz papel de amadora revelando de cara minhas pretensões, chorando rasgado a cada emoção, enfim, me permitindo ser vista. Nos últimos anos me revelei como se não houvesse amanhã. Logo, afoguei minha cara no travesseiro diversas vezes.

Talvez eu não seja tão banana

Até que tomei consciência de que talvez eu não seja tão banana quanto pensava. Descobri outro livro: A Coragem de Ser Imperfeito, de Brené Brown, uma doutora que defende que bananas como eu são… os verdadeiros ousados. 

“Pessoas corajosas são aquelas dispostas a abandonar quem pensavam que deveriam ser a fim de ser quem elas realmente eram”, diz Brené Brown.

Um papo com Brené Brown

Dra. Brown trouxe luz aos dias em que, tomada pela certeza de que eu iria ao encontro do meu propósito, escrevi emails sinceros e expus minhas ideias tolas para as pessoas que me abririam caminhos. Ela deu um nome a esse tipo de atitude: a beleza da disponibilidade de se fazer algo quando não há garantias.

E mais: quando eu comecei a postar uns vídeos de cara lavada e nenhum preparo querendo explicar o que são viagens transformadoras, a Dra. Brown saiu-se com essa: “a vulnerabilidade é o centro da vergonha e do medo, mas parece que também é a origem da alegria, da criatividade, do pertencimento e do amor”.

Antes que o ano termine – e já tarde nessa vida – fui devorando as ideias de Brené Brown enquanto me lembrava das inúmeras vezes em que rompi protocolos para demonstrar sinceramente o quanto eu almejava determinada oportunidade. E o quanto o medo de ter parecido inadequada me assombrava em seguida.

Deixa pra lá!

E ela me lembrou de que, mais do que cismar com o espelho e com nossa suposta inadequação, talvez seja interessante ser simplesmente autêntico e real. Sim, deixar pra lá mesmo… Ligar na letra F, sabe como? E nos deixar ser vistos, vistos profundamente, amar com todo nosso coração mesmo que não haja garantias.

Brown sugeriu que paremos de catastrofizar ao assumir o amor por algo e comecemos a acreditar que somos suficientes para estar naquela situação.

Chegamos ao ponto de, em vez de respeitar e admirar a coragem e a ousadia que estão por trás da vulnerabilidade, abrimos espaço para medo, desconforto, julgamento e crítica.

Então, pra mim… Chega!

Deu tempo, antes do fim do ano, de assumir que minha entrega sincera – essa que me torna vulnerável aos olhos do mundo – também determina o alcance da minha coragem e da clareza do meu propósito.

Meu nome é Juliana Reis. E assim falei!

Aquele “quê” da pessoa plena (segundo a Dra. Brown)

1. Cultiva a autenticidade; se liberta do que os outros pensam.

2. Cultiva a autocompaixão; se liberta do perfeccionismo.

3. Cultiva um espírito flexível; se liberta da monotonia e da impotência.

4. Cultiva gratidão e alegria; se liberta do sentimento de escassez e do medo do

desconhecido.

5. Cultiva intuição e fé; se liberta da necessidade de certezas.

6. Cultiva a criatividade; se liberta da comparação.

7. Cultiva o lazer e o descanso; se liberta da exaustão como símbolo de status e da

produtividade como fator de autoestima.

8. Cultiva a calma e a tranquilidade; se liberta da ansiedade como estilo de vida.

9. Cultiva tarefas relevantes; se liberta de dúvidas e suposições.

10. Cultiva risadas, música e dança; se liberta da indiferença e de “estar sempre no

controle”.

Eu, caçador de mim

Eu e minha irmã Cris cantamos a canção Caçador de Mim, de Milton Nascimento, no palco de um Sesi nos final dos anos 80.

Eu tinha 12 anos, ela 16. Minha voz não é de cantora, mas quando se juntava à dela algo mágico acontecia.

Assim que entoamos a primeira frase –  “Por tanto amor, por tanta emoção, a vida me fez assim…” – a plateia começou a aplaudir. Cantamos até o fim.

Assim que entoamos a primeira frase –  “Por tanto amor, por tanta emoção, a vida me fez assim…” – a plateia começou a aplaudir. Cantamos até o fim.

Eu só sentia tudo com o coração e estava segura com ela do meu lado. Era para a Cris que eu olhava quando precisava saber como agir ou o que pensar quando comecei a deixar de ser menina-criança e precisava de referências. No meio da canção lembro-me de ter segurado a mão dela, que era delicada, e me sentir menos nervosa.

Nunca me senti nervosa em palco em frente ao público. Mas daquela vez  meu pai e minha mãe estavam na plateia.

Fui aprendendo essa canção aos poucos nos ensaios daquele ano, e não digo que foi sem sofrimento. Naquela idade de mudanças na vida de menina, eu já compreendia o que significa ser “caçador de mim”, ou como é “abrir o peito à força numa procura”. E já imaginava também o significado de “fugir às armadilhas da mata escura”.

Então eu cantei com verdade.

Quando a fita da gravação chegou, eu e minha irmã assistimos à apresentação um pouco envergonhadas, acho, com nossa aparência. Meninas tinham muito essa briga com a autoestima e com as tantas mudanças no rosto, no corpo, nos sentimentos.

Foi assim que, então, a Cris sumiu com a fita. Eu segui a orientação de deixar aquilo em segredo, né. Caçula fica quieta.

Desculpa, mãe. Nem você, nem ninguém vai ver a gente cantando Caçador de Mim.

Hoje, depois de terminar o trabalho, coloquei uma playlist para fazer o jantar com vibrações de serenidade e essa música estava lá.

Chorei. Eu estava cortando cebola para uma guacamole. Mas não foi culpa dela, não.

Chorei mesmo.

Eu choro pra caramba. Às vezes tenho até vergonha disso, mas é que sai água do meu rosto assim sem mais nem menos. E piora quando eu tento explicar.

Eu choro de feliz, de triste, de cansada, de fome, de raiva, de amor… Parece que tudo transborda de mim… Não acho que seja fraqueza.

Eu choro de feliz, de triste, de cansada, de fome, de raiva, de amor… Parece que tudo transborda de mim… Não acho que seja fraqueza. Pelo contrário. Meu irmão Marcelo é que fala assim quando me vê chorando: “ih, a lá a Ju”. Às vezes eu choro só pra relaxar. E aí equalizo as emoções.

Chorei porque hoje compreendi a canção ainda melhor.

Ouça Caçador de Mim clicando aqui.

 

 

 

O dia em que almocei com os músicos do Midnight Oil

Almocei com Peter Garrett quando eu tinha 20 anos.

Peter é um músico australiano, um dos mais famosos ambientalistas do mundo e vocalista da banda australiana de rock Midnight Oil. No final dos anos 80 e início dos 90 a banda fez um baita sucesso. Seu rock ativista clama pela proteção do meio ambiente e pela defesa dos direitos do povo aborígene. Só que nessa época não tínhamos tanto acesso ao inglês como agora. Então cantávamos as músicas da moda sem entender o que significavam.

Se você surfava nesse tempo, com certeza curtia Midnight Oilporque o som da banda era famoso entre os surfistas. Por isso, os “oils” também eram representantes do surf rock.

Os “oils” !

Aos 20 anos eu estagiava num jornal, e Curitiba, minha cidade, estava numas de ser a cidade ecologicamente correta do Brasil. Um dia o secretário de redação correu na minha direção e pediu que eu fosse almoçar na Universidade Livre do Meio Ambiente com o prefeito e uma tal banda estrangeira: iriam inaugurar algo ecológico.

Cheguei lá e dei de cara com Peter Garrett no buffet de feijoada. Eu ainda não era vegetariana e não ligava uma coisa à outra, mas Peter era. Almocei com ele e os caras da banda me comunicando em mímica sem saber o que estava perdendo. Ele era um ídolo pra mim, mas pelas razões erradas. Eu gostava da batida da música. Só isso.

Muito antes do almoço

Aos dez anos eu tinha um caderno de anotações dedicado ao que eu achava que deveria mudar no mundo. E tudo isso aí que a gente tá falando hoje sobre plástico demais, lixo demais, poluição demais, maltrato aos animais demais, desrespeito à ancestralidade demais…tudo isso estava anotado no meu caderno. Estava anotado também o nome de pessoas e empresas que eu achava que um dia poderiam ajudar. Era um fantasia de criança.

Aí as pessoas riam um pouco quando viam meu caderno… Eu fui crescendo, tomando vergonha e deixando ele pra lá. Era da Tilibra.

Blue Sky Mine e a mina de amianto azul

Assim, quando cheguei aos 20 anos, sentei ao lado de Peter Garrett, o cara que escreveu Blue Sky Mine (abaixo). Eu pulava ouvindo a canção sem saber que ela se refere ao tenebroso caso da mina de amianto azul Wittenoom, na Austrália. Milhares de pessoas que trabalharam por lá expostas à substância entre os anos 40 e 60 ficaram doentes ou morreram. Na canção, Peter diz que os interessados mentem aos acionistas, cruzam os dedos e pagam àqueles que produzem as verdades – enquanto lucro chega às alturas.

Na canção Beds Are Burning, talvez a mais famosa do Midnight Oil, ele fala sobre devolver terras para os aborígenes dizendo que a hora de pagarmos o aluguel, a hora de pagar a nossa parte, chegou. “Vocês cortaram todas as árvores, envenenaram o céu e o mar, tiraram tudo de bom que havia no solo” – é como começa outra canção que denuncia a destruição do ambiente em nome da ganância.

 

Eu almocei com Peter Garrett e não falei nada.

 

A lama da Vale

Por fim, me lembrei desse almoço quando a montanha de lama da Vale desceu matando e destruindo. Minha menina de dez anos, escondida dentro de mim, pensou que se tivesse anotado o telefone do Peter Garret, ele faria uma música tão grandiosa sobre essa lama assassina… Tão grandiosa quando Blue Sky Mine e tantas outras.

O careca de dois metros atuou no parlamento, no Ministério do Meio Ambiente e no Ministério da Educação, da Infância e da Juventude da Austrália anos depois.

Se eu tivesse ficado amiga do Peter Garrett, ele escreveria uma música e denunciaria essas coisas todas que estão acontecendo aqui. Mas diria que ” a música pode servir de trilha sonora, mas são as pessoas que fazem a mudança”.

A música pode servir de trilha sonora, mas são as pessoas que fazem a mudança”.

Aos 10 anos a gente sonha.
Entre os 10 e os 20, a vida bota umas armadilhas para testar se a gente quer mesmo seguir o sonho.
Na maioria das vezes a gente esquece o sonho.
E às vezes só se liga nos sinais quando já é tarde.
Eu almocei com Peter Garrett e não aproveitei nada.
Droga.

 

 

Viajante Independente: LIÇÃO Nº 1

Em abril de 1917, Lênin desembarcou de um trem na Estação Finlândia, em Petrogrado (hoje, São Petersburgo), na Rússia. Após um longo exílio, ele vinha liderar uma das mais dramáticas revoluções da história mundial.

Eu também cheguei na Rússia nessa mesma Estação Finlândia. Só que quase 100 anos depois, como uma viajante independente e sem pretensões – porém tendo cometido um erro básico que me deixara sem dinheiro e na condição de, digamos, analfabeta. Sem amigos à espera e sem um só rublo no bolso para negociar, eu também estava condições de me comunicar. Havia me esquecido que, ao atravessar a fronteira finlandesa e chegar na Rússia, o alfabeto era o cirílico – um sistema alfabético de escrita sobre o qual eu não tinha o mínimo conhecimento.

Eu estava em apuros.

Eu estava viajando sozinha.

Essa história é sobre como viagens solo (e suas burradas) podem nos fortalecer para os duelos diários, além de ensinar lições muito valiosas sobre nós mesmos

Quando você for viajar sozinho:

LIÇÃO 1. VÃO TENTAR TE CONVENCER A DESISTIR

Os outros farão de tudo para te convencer a não ir adiante. Uma vez que você faz um movimento – e esse movimento é ousado – você mostra que sempre há gente se arriscando a realizar coisas apesar das dificuldades.

E isso incomoda.

É que se juntos não fizermos nada, não precisaremos lidar com nossos possíveis insucessos, não é?

Bom, foi por amor que meu irmão sugeriu que eu voltasse e fizesse ‘um concurso público’ quando um dia comuniquei que iria para a Estônia e não para o aeroporto tomar o voo de volta pra casa.

Também por amor, amigas me enviavam mensagens enquanto eu viajava ressaltando a falta que minha presença fazia. Mas quer saber? Quando voltei, a maioria delas estava ocupada lidando com a própria vida.

Mas eu me cansei mesmo foi de encontrar quem, sem motivo aparente, desencoraja o outro a desbravar fronteiras.

Mas eu me cansei mesmo foi de encontrar quem, sem motivo aparente, desencoraja o outro a desbravar fronteiras.

Certo inverno, numa troca de trens para a Escandinávia, encontrei um brasileiro recém-formado em medicina e orgulhoso dos muitos carimbos em seu passaporte. Ele havia estado na Noruega num tempo escuro e frio! Então, no momento, ele era o meu herói!  E dele eu queria todos os conselhos de viajante que pudesse conseguir. Seu assunto principal era ele mesmo e suas façanhas ao norte. E seus conselhos se concentravam nas desgraças que poderiam me abater – ser deportada e sofrer com solidão, frio e escuridão… Era hora dele voltar para o Brasil, mas queria continuar on the road .

Ele me dizia “não vá, vai ser difícil”. Mas, gente… Por quê?

TAMBÉM VI ISSO NUM FILME

No filme Livre , baseado em uma história real, Reese Whiterspoon faz o papel de Cheryl Strayed, uma solitária viajante que busca a cura para um trauma pessoal peregrinando. Ela atravessa a Pacific Crest Trail, trilha de 4265 quilômetros que cruza os Estados Unidos desde o México até o Canadá. Cheryl faz amigos no caminho. Um deles é Greg. Em certo momento, Greg quase planta na mente de Cheryl a dúvida determinante: continuar ou desistir? É incrível como ele faz isso quase sem querer. E sutilmente.

AMIGO DA ONÇA OU INOCENTE?

Os mais observadores percebem: o personagem de Greg anda lidando com os próprios monstros e frustrações durante a aventura. E não é que em determinado ponto vem realmente a notícia de que ele desistiu? Pois Cheryl continuou.

O escritor Steven Pressfield – autor do livro que deu origem ao filme Lendas da Vida (com Matt Damon e Will Smith) – nos fala sobre um inimigo que nos impede de realizar aquilo que mais desejamos.

Esse inimigo é nossa própria Resistência.

Em seu livro A Guerra da Arte , ele disseca a Resistência mostrando diversas de suas faces.

E uma das faces da Resistência é a culpa que colocamos nos outros – enquanto o que nos prejudica é o peso que damos àquilo que os outros dizem.

“Quando vemos os outros começando a viver suas vidas autênticas, ficamos loucos se não estivermos vivendo a nossa própria vida real. Os indivíduos que se sentem realizados em suas próprias vidas quase nunca criticam o próximo. Quando falam, é para oferecer encorajamento.”
(Steven Pressfield, em A Guerra da Arte)

 

Touros na espanha

Touro à vista!

Essa história não é só sobre os míticos touros espanhóis, mas sobre nossa luta para largar a telinha do celular

É ele! É ele! De olhos vidrados na janela do ônibus, em algum lugar entre Valladolid e Valência, na Espanha,  notei ao longe a figura que há tempos eu buscava.

Não dava pra gritar “motorista, eu vou descer!”

Assim, num golpe rápido saquei a câmera e registrei um dos touros solitários que se elevam como sombras imponentes no horizonte espanhol. Eu finalmente via um.

Os touros são a estampa mais óbvia dos souvenires de viagem do país.

Mas você já viu um desses com os próprios olhos? Quem são eles? O que fazem lá?

Polêmica

Nos anos 80, painéis publicitários que remetem à tradição espanhola mais polêmica – as touradas – foram fincados pelos campos da Espanha fazendo propaganda do jerez Osborne.

Jerez é um vinho fortificado típico do país.

E os painéis da Osborne, recortados em formato de touro, podiam ser vistos de longe – especialmente por quem viaja pelas rodovias.

Acontece que, por volta de 1990, a Espanha passou a proibir grandes cartazes comerciais em suas estradas nacionais. Assim que as autoridades ordenaram botar abaixo os chifrudos gigantes da Osborne, parte da população que havia se afeiçoado à ideia, protestou.

Não houve de jeito de derrubar os touros. Pelo menos não todos eles…

Os que restaram de pé tiveram as referências à propaganda removidas. E pintados de negro.

Permaneceram, então, espalhados, belamente fincados pelas terras espanholas.

Eu vi! E vi porque eu estava olhando o mundo lá fora.