Como era ser viajante independente na era pré-Google?

“Pega esse livro e vai com ele”, disse minha amiga brasileira M.J., uma viajante experiente naqueles tempos. Ela me entregou um guia de albergues grandalhão feito uma Bíblia e ele pesava bastante, mesmo com as páginas feitas em papel jornal. M.J, estava me ensinando a como viajar pelo mundo. “Sem ele você não vai se achar; aí tem endereços e os telefones de que precisa”.

Naquele tempo, não existiam as buscas no google e a tecnologia para pesquisar viagens não era assim grande coisa.

LONELY PLANET 

Houve um tempo em que viajávamos sem internet. E mesmo quando ela chegou, houve também um tempo em que viajávamos sem internet móvel. Pois é, a gente não tinha celular, nem sites com sistemas de reservas de hospedagem como booking ou airbnb… Ter uma lista de acomodações em mãos é que nos dava o norte. Muitas vezes o destino era decidido de acordo com a possibilidade de hospedagem. 

Os guias de viagem eram compilados de experiências vividas por viajantes que vieram antes e catalogaram o caminho para nós. Lonely Planet era um dos principais e suas edições em papel eram dificilmente encontradas em português. O casal de ingleses que começou montando essa verdadeira bíblia viajante foram pioneiros de um mercado de livros, revistas e guias de viagem a partir de um hobby que inventaram ainda nos anos 1970: eles gostavam de organizar suas viagens para mostrá-las aos amigos.

Tradicional versão do guia da Lonely Planet para viajar barato e independente na Europa.

Sem um guia de viagem Lonely Planet na mão, muitas pessoas não teriam nem começado a pensar em viajar de forma independente. 

Assim, na semana seguinte em que ganhei o guia de albergues da amiga, estufei a mochila com mais 5 quilos de guias de viagem, mapas e livretos de horários de trem e barcos por toda a Europa e Oriente Médio – tudo em papel. E parti. Cuidava daquela minibiblioteca ambulante como cuidava da minha vida. Era a minha bússola

O QUE SE FAZIA CHEGANDO AO DESTINO

A cada desembarque, a mesma rotina: uma visita ao escritório de turismo da cidade —  lá, eles abriam um mapa em papel e iam nos dizendo onde comer, onde dormir, o que visitar, como se locomover pela cidade… Bom mesmo era quando o escritório de turismo ficava já na estação ou no aeroporto. Às vezes, ficava numa praça principal ou em outro ponto de referência. Aí era preciso já desembarcar com alguma noção de como se locomover até lá. Por isso, era importante ter o próprio mapa, que normalmente vinha impressos nos guias de viagem que carregávamos.

Assim, a operação de chegada era umas das que causava mais insegurança no viajante solitário e independente — afinal, imagine chegar num lugar desconhecido em horário em que os principais serviços ao turista estivessem fechados

COMO ERA A HOSPEDAGEM

Boa parte da viagem era gasta na batalha da hospedagem. Não existiam aplicativos de reservas, então ficava por nossa conta descobrir e reservar a cama do dia, ou a do dia seguinte. Para quem viajava sem planejamento, esse era um dos principais desafios.

Às vezes podia acontecer de você chegar num lugar e não ter mais cama no hotel, pensão ou albergue [hostel]. Teria que usar o guia para encontrar outro lugar, e também seu cartão de telefone público – que nem sempre era internacional. A cada país ou cidade, o sistema de telefone podia ser diferente e aceitar ou não seu cartão. Do outro lado da linha alguém atendia e qualquer que fosse o idioma, o ideal era usar o inglês decorado: “I´d like to make a reservation”.

E assim a gente ia achando bons lugares ou caindo em muitas roubadas — como no albergue de Budapeste, cujo dono vendia drogas; ou no de Cracóvia, que me trancou para fora debaixo da neve porque passei do horário [curfew] – lá tinha toque de recolher.

REGRAS E BED BUGS

A maior parte das acomodações eram albergues. No início, eles faziam parte de uma rede internacional de albergues, cheia de regras e que só atendia a quem tivesse uma carteirinha previamente expedida. Depois começaram a surgir os albergues independentes, que poderiam ser um paraíso ou lugares sujos e mal cuidados — acertar era parte da experiência viajante. Foi num albergue independente nos Alpes suíços que realizei meu sonho de morar na montanha. O lugar era tão incrível, que acabei ficando não por semanas ou meses, mas por anos. Mas isso é outra história. 

É importante lembrar que o principal modelo de acomodação nos albergues eram os dormitóriosquartos coletivos que podiam contar com 3 até dezenas de camas. Alguns eram mistos, outros não. Uns eram silenciosos e cheios de regras; outros, pura bagunça. Havia aqueles que ofereciam lençol e travesseiro, e aqueles que cobravam pela roupa de cama.

Albergue bem arrumadinho em Rotterdam, Holanda. (foto de Marcus Loke para Unsplash)

 

Alguns albergues permitiam que usássemos nossos sacos de dormir e aí que entrava o bed bug [ou percevejo]. Esse bichinho mordia viajantes e causava alergia e infecções de pele – às vezes febre, como aconteceu comigo. O bed bug costumava pegar carona e viajar nos sacos de dormir e roupas  — e assim ele se instalava no colchão do próximo albergue a ponto de em alguns momentos do fim do século 20 e início do 21 tornar-se um verdadeiro terror nas redes de albergues da Europa.

LOCKERS 

Lockers eram os armários para bagagem estrategicamente colocados nas estações de trem ou de ônibus, e nos aeroportos. Eles permitiam que o viajante independente pudesse largar a bagagem enquanto saía pela cidade para procurar acomodação ou para simplesmente fazer uma visita de um dia antes de partir para outro destino. Logo, o custo dos lockers também era computado no planejamento do dia: eles podiam custar de centavos a dezenas de euros ou dólares.

Lockers em Berlim: que alívio deixar as coisas aí e sair pra passear (Bekky Bekks Unsplash)

A França era um lugar difícil para fazer essa manobra de visitar cidades por um dia e partir para outro destino. É que lá os lockers eram proibidos devido a um atentado: no passado, alguém colocou bombas em alguns deles e o resultado levou à proibição dessa praticidade no país inteiro.

Nesse caso, um viajante independente podia até ter a sorte de encontrar alguém que guardasse sua bagagem [como eu fiz em Cognac, num passeio repleto de confusões]. Por outro lado, numa ilha dinamarquesa, me deparei com lockers enormes e caros – não pensei duas vezes em deixar minha bagagem dentro de um e não trancá-lo [o lugar era conhecido pela segurança]. Quando voltei, 12 horas depois, lá estavam meus pertences intactos. 

A IMPORTÂNCIA DO MAPA EM PAPEL

Uma das cenas mais comuns: a gente não tinha GPS nem celular. (Nick Seagrave Unsplash)

Definíamos nossos destinos no bate-papo e rabiscando os mapas em papel. Eles faziam o “cruzar fronteiras” parecer um jogo de tabuleiro e isso era divertido, desafiador e empolgante – além de informativo. Foi assim que um dia eu estava em Copenhagem e saí traçando uma linha que me levou a Roma, para então atravessar a Grécia, entrar na Turquia, pular para a Síria e estacionar no Líbano.

Não havia GPS e o tempo de viagem variava bastante de acordo com o tipo de transporte que encontrávamos para cruzar cada linha rabiscada no mapa.

COMO NOS COMUNICÁVAMOS COM A FAMÍLIA [OU NÃO]

No filme A Praia, com Leonardo di Caprio, ele finalmente se comunica com a família usando a internet discada de um cyber café após meses vivendo em uma comunidade de viajantes numa ilha tailandesa. Era mais ou menos assim mesmo. Semanas podiam se passar sem que nos comunicássemos com a família ou os amigos, uma vez que a internet não existia em todo lugar e as ligações internacionais eram bem caras. 

Cyber cafés existiam em alguns lugares e cobravam o equivalente a 1 a 5 euros por 30 minutos de uso do computador dom internet. Era quase o suficiente para mandar um email para os pais avisando que estávamos vivos ou usar o messenger ou msn, uma ferramenta de comunicação instantânea pelo computador. Aliás, era bem comum receber de tempos em tempos um email vindo de casa com o assunto “onde está você?“.


Ah, smartphones não existiam e muito pouca gente tinha celular..

Muitos viajantes devem se lembrar da EasyEverything, uma rede de cyber cafés com jeito todo moderninho e quantidade enorme de computadores [como essa mostrada aí no filme do Di Caprio]. Ela existia em cidades como Munique, Berlim, Barcelona… Nessa última, geralmente as unidades eram frequentada por batedores de carteira que se valiam da nossa distração para levar as mochilas depositadas no chão ou atrás do encosto das cadeiras.

Telefones públicos podiam ser usados com cartão, mas esses nem sempre valiam se comprados em um país e usados em outro. Com a variação de tarifas, também era difícil saber quando os créditos acabariam [e às vezes eles acabavam antes da gente completar a reserva da acomodação]. Privilegiados podiam ligar para casa por meio de um código da Embratel, a cobrar,  e mudava de número a cada país. E esse código não era tão fácil de ser descoberto.

Enfim, toda essa dificuldade, tornava a viagem uma grande aventura solitária e um desafio diário, uma vez que planejar caminhos sem comunicação certa era a condição.  

LIVROS = COMPANHEIROS DE VIAGEM 

Lia-se muito pelo trajeto. Ler aplacava a solidão do viajante sem celular. Estantes improvisadas em redutos mochileiros mantinham-se vivas com o ir e vir de títulos. Conheci Les Miserábles, de Victor Hugo, cruzando a Ucrânia. Ele ficou numa pensão da Crimeia, de onde levei On The Road [o clássico beatnik de Jack Kerouak atravessou o Mar Negro comigo e ficou na Turquia].

Viajantes lendo (foto de Rathish Gandhi Unsplash)

E SOBRE AS FOTOS? 

O tempo do viajante não era gasto nas milhares de tentativas de selfies perfeitas — aliás, essa palavra nem existia —  e nenhum lugar se esforçava para ser “instagramável”.  Às vezes, a gente só trocava a posição da câmera e a foto, de trás para frente, dava certo ou não. Mesmo no lugar mais bonito do mundo ninguém enlouquecia para sair bonito na foto ou para provar que estava lá.

Selfie: hábito que não existia, portanto não tirava a nossa paz (foto de Cristina Zaragoza)

E AS PASSAGENS?

Sem a tecnologia dos aplicativos e da internet móvel, pesquisar passagens baratas era um pouco mais complicado. Passes de trem pela Europa facilitavam a vida para quem pretendia descer no destino que bem entendesse e ofereciam descontos para menores de 25 anos. Depois, surgiram as companhias de ônibus fazendo parecido.

Promoções de passagens de último minuto eram anunciadas nas estações e às vezes um trajeto longo chegava a ser oferecido pelo equivalente a 10 euros. E quando as companhias aéreas de baixo custo [low cost] surgiram, o mundo ficou ainda menor – embora fosse parte da jornada viajar por terra observando a troca de cenário.

 

  • Você também pode escutar essa história em formato de podcast acompanhando a ilustração feita exclusivamente pela artista Lu Otto, uma leitora que mora em Los Angeles e gosta de ilustrar o que lê. 

 

Como era viajar offline

Se me perguntassem qual a diferença entre a era dos viajantes offline e a dos hiperconectados? Estar verdadeiramente presente.

“Pega esse livro e vai com ele”, disse minha amiga Milla me entregando o guia de albergues – grandalhão feito Bíblia –  e já listando as últimas recomendações sobre como viajar pelo mundo. “Sem ele você não vai se achar, aí tem endereços e os telefones de que precisa”, alertou. Na semana seguinte eu estufava a mochila com 5 quilos de guias de viagem, mapas e livreto de horários de trem e barcos – tudo em papel

Atlântico atravessado, assim era a rotina: a cada desembarque, uma visita ao escritório de turismo da cidade –  lá diziam onde comer, dormir e ir. Não existia aplicativo de reservas, então podia acontecer de você chegar num lugar e não ter mais cama.Teria que usar o guia e seu cartão de telefone público – que nem sempre era internacional – e torcer para que do outro lado da linha entendessem seu inglês decorado: “i´d like to make a reservation”. 

Boa parte da viagem era gasta na batalha da hospedagem. E assim a gente ia caindo em muitas roubadas — como no albergue de Budapeste cujo dono vendia drogas ou no de Cracóvia, que me trancou para fora debaixo da neve porque passei do toque de recolher ]hoje as avaliações online atualizadas diminuem esses riscos]. 

Cyber cafés e mapas em papel

Cyber Cafés não serviam café, mas computadores com internet cobrando uma taxa. Então você tinha que ponderar: matar saudades da mãe ou gastar 2 euros? Foi num desses o israelense Eli me apresentou o então revolucionário Google –  mas o mundo das pesquisas online ainda era tão novo que nem sempre digitar “budget accommodation” ou “where to eat in…” nos levava a um lugar decente. Tudo era surpresa. Aliás, Eli viajava sem câmera para “não perder o foco da viagem”. 

Lia-se muito pelo trajeto. Porque ler aplacava a solidão do viajante sem celular. Estantes improvisadas em redutos viajantes mantinham-se vivas com o ir e vir de títulos. Conheci Les Miserábles de Victor Hugo cruzando a Ucrânia. Ficou numa pensão da Crimeia, de onde levei On The Road – o clássico beatnik de Jack Kerouak atravessou o Mar Negro comigo e ficou na Turquia. 

Amizades analógicas

Foi num albergue encravado nos Alpes que uma geração de viajantes retornou de seus países por vários invernos, reforçando a amizade nascida nas conversas ao lado da lareira e durante refeições preparadas na cozinha coletiva. O tempo dessa turma não era gasto na busca de selfies perfeitasaliás, essa expressão nem existia e às vezes a gente só virava a câmera e a foto dava certo ou não. No lugar mais bonito do mundo  ninguém enlouquecia para sair bonito na foto ou para provar que estava lá. Definíamos nossos destinos no bate-papo e rabiscando os mapas em papel à luz da fogueira lá fora, respirando o ar gelado da montanha. O wi-fi nem existia.

Voltei ao mesmo destino por muitos anos até o grupo rarear. Notei surgir uma nova e silenciosa geração de viajantes absortos com aquela  tela na palma da mão e fones no  ouvido, pulando de uma conversa para outra com alguém que não estava ali, fazendo selfies… O canto da lareira do albergue alpino, antes tomado por jogos de tabuleiro, sustenta agora laptops, tablets e carregadores portáteis. Outro dia, testemunhei uma discussão: o aplicativo da viajante apontava 10 minutos até um museu, mas a recepcionista sugeria outra rota, mais contemplativa, com duração de 20. “Por que me perder se posso seguir o GPS?”. Por quê?

Enfim, sob a luz da tecnologias, tudo ficou diferente. Mas não vim aqui para falar mal, não. Sem elas ainda seria desafiador demais organizar uma viagem e lidar com imprevistos. Haja coragem para sair pelo mundo às cegas [ou offline]…Tecnologia liberta e traz flexibilidade.

Se me perguntassem qual a diferença entre a era dos viajantes offline e a dos hiperconectados? Estar verdadeiramente presente. Hoje, aparece alguém no whatsapp, no Facebook ou no Instagram oferecendo, por um instante, a ilusão de que você não está sozinho na viagem. Mas você está. E na solidão você tem que dar seu melhor para realizar a necessária tarefa de passar de um estágio a outro.

* História publicada originalmente na Revista Vida Simples.

*  Você também pode escutar essa história em formato de podcast acompanhando a ilustração feita exclusivamente pela artista Lu Otto, uma leitora que mora em Los Angeles e gosta de ilustrar o que lê. Ela leu esse texto e o desenhou.

Uma ciclovia encantada na Europa báltica

Quando minha amiga Jurga me entregou o mapa da Lituânia, eu me propus a progredir aos poucos fazendo uma day-trip de bicicleta todos os dias — sempre voltando ao mesmo ponto no fim da tarde. Mas algo de fantástico acontecia a cada vez que eu deixava o limite urbano de Klaipeda e adentrava a ciclovia que cortava o país. É que certas histórias que vivi naquele caminho não caberiam no tempo e na distância que eu percorria.

 

                                 A ciclovia, a floresta, eu e a linha de trem atravessando os Bálticos

A Lituânia foi o último pedaço da Europa a se converter ao cristianismo. Dizem que rituais pagãos seguiram acontecendo no país até o século 20. Dizem… Porque às primeiras pedaladas eu já me via empurrada para dentro de um universo à parte, um mundo de coexistência harmoniosa entre a presença humana e os elementos da natureza — algo como um vínculo espiritual entre os dois.

Ao longo da via, cruzes e símbolos folclóricos esculpidos em madeira iam aparecendo, revelando uma forte presença mística tanto pagã quanto cristã. E eu seguia pedalando.

Jodkrante
                                            Esculturas de madeira que eu encontrava pelo caminho

Nos bosques de pinus acarpetados por líquen, cogumelos eram colhidos por gente silenciosa vinda–sei–lá–de–onde carregando cestinhas. Entre uma curva e outra, o chão da floresta às vezes virava areia. A bicicleta quase escorregava. Surgia, então, uma falésia, uma praia deserta, alguém sozinho colhendo âmbar… E o mar prateado

No trajeto, era comum passado virar presente .

Uma vez meu pneu topou num pedaço de concreto. Era ele, o gigante MEMEL NORD, que vinha se desenterrando de uma duna entre o bosque e a beira do mar, espalhando areia e galhos num moroso e mórbido movimento.

— Então, ele existia mesmo…Até então, eu achava que era boato.

Memel Nord

Memel Nord é um bunker, um bruto de um abrigo militar subterrâneo, blindado e fortificado, escondido na areia entre a praia e a floresta desde a 2ª Guerra Mundial. Foi descoberto recentemente.  Atrás de uma porta de aço, descobri que seus corredores percorriam o tempo guardando um pesado arsenal tanto alemão quanto soviético, uniformes militares, capacetes arruinados por buracos de bala, louças com a marca da S.S. [a organização paramilitar de elite nazista]... 



Quando cheguei ao telhado, me sentei sobre a artilharia antiaérea e acompanhei, ali sozinha, ao mais insólito pôr do sol da minha vida. Do topo do bunker, uma estranha sensação de embriaguez e dor de cabeça me dominavam. Tomei um gole vigoroso da água que levava no bornal, deslizei pela laje, montei na bicicleta e pedalei firme, retomando a viagem.

Pelas colinas dessa senda encantada é que fui conhecendo o que significa a plena presença – o tal  do“agora” de que tanto se fala por aí.

Um dia pedalei com mais empenho e acabei entrando na Curlândia — uma faixa de areia que avança 100 km pelo mar báltico dando num território russo chamado Kaliningrado.

Formada há mais de cinco mil anos, a Curlândia confundiu antigos cavaleiros e mercadores que pensavam ter encontrado ali um atalho entre os reinos de outro tempo. É que o  sopro forte dos ventos da região fizeram dunas gigantescas apagarem assentamentos humanos. Hoje os grandes montes de areia estão domados por os pinheiros plantados por toda a extensão da Curlândia. Mas não totalmente. Aqui o vento uiva e pode facilmente retorcer o pneu da bicicleta, assim como fez os troncos e galhos das florestas dançantes que beiram a ciclovia. 

A ciclovia na Curlândia indo até Kaliningrado (foto de Marija L @marliu)

Aliás, férias aqui na península de Curlândia, até 1990, foi privilégio reservado apenas aos amigos do regime soviético. (O que não foi, diga-se de passagem, o caso da família da Jurga, a amiga que me forneceu o mapa para essa terra excêntrica.)

Nida
Nida: vilarejo na península da Curlândia

Certa vez, ainda na península, quase atropelei um grupo de pessoas que atravessava meu caminho carregando flores e tochas acesas. Após pedir desculpas, decidi segui-las discretamente. Foram até um vilarejo às margens de um pântano em brumas e embarcaram em canoas. Lá no meio do pântano, atearam fogo em grandes figuras mitológicas de madeira erguidas sobre a água. Ali, de forasteira, notei que a ordem geral era deixar queimar  o que já não servia mais. A tarde caía e aquele era um ritual celebrando a partida do verão e a chegada do outono.

Bem mais tarde ainda naquele dia  —  quando retornei ao meu ponto diário de partida — , Jurga e seu marido Martynas me convidaram para jantar o peixe da lagoa que se forma entre o continente e a  península Curlândia. Esse peixe é capturado apenas durante o alto inverno, quando sobe até a superfície congelada. É uma iguaria especialmente oferecida a amigos verdadeiros ou a quem transpõe uma jornada e volta transformado. Como aconteceu comigo na encantada ciclovia Eurovelo 10.

Ilustração de Lu Otto sobre eu e a ciclovia mágica na Europa Báltica
IMPORTANTE

ONDE ME HOSPEDEI

Jurga e Martyna são donos do albergue (hostel) e apartamentos para alugar onde fiquei na Lituânia, na cidade de Klaipeda. São meus velhos amigos. Recomendo a passagem por lá e os passeios com eles pelo país.

ONDE FICA ESSA TAL CICLOVIA

A senda mágica que percorri diariamente, sempre voltando a Klaipeda, existe  e faz parte da ciclovia internacional Eurovelo 10.

Clicando aqui você pode ouvir essa história
em formato de PODCAST também. 

 

Os Anjos do Caminho

A porta do metrô se abriu. Do lado de fora ela me olhava fixamente, como se estivesse me esperando. Ignorava os empurrões da multidão e não tirava os olhos de mim. Cabelos brancos, cachorro no colo. Acenou e fez um gesto como se dissesse “siga-me”.

Tentei acompanhá-la transpondo as escadas, atrevessando espaços estreitos me desviando das pessoas… Eu não tinha escolha, estava assustada e não conhecia ninguém. Entrei naquela por falta de opção e pra valer.  Ela dobrou uma, duas, três esquinas e então…parou!  Apontou para o final de beco.

— Allez! – disse aquela mulher de figura tão francesa… [segundo o estereótipo que a maioria de nós confere aos franceses, né]. “Allez” é o nosso “vá”. E lá estava ele… O lugar onde eu ia me instalar em segurança, o  único espaço com uma cama disponível na cidade aquela noite na cidade. Era um albergue nos limites de Paris. Se o mundo já era desconhecido para mim, imagina um bairro afastado em Paris. Passava das 21h, fazia frio e chuviscava. Tudo escuro já.

Viajante de primeira viagem

Essa foi a largada para minha primeira grande viagem. Eu vinha de uma hora em pé dentro de um metrô em pane nos subterrâneos de Paris. Nunca tinha feito uma viagem internacional sozinha. Penava metida num casaco pesado, trazendo a mochila estufada com o desnecessário.

Eu era inexperiente. Chorei discretamente encostada num dos apoios de alumínio do vagão, morrendo de calor e medo. Eu quis desistir de continuar viajando, talvez tivesse dado um passo maior que a perna. Até que a porta se abriu na última estação nos limites da cidade e ela não deixou abandonar o sonho.

Não faço a mínima ideia de que, ela era, de como se posicionou justamente na porta de onde eu sairia e de onde vinha aquela certeza de que eu precisava de ajuda. Mas nunca me desencantei da crença de que ela estava ali por mim.

Metrô em Paris (foto de Lee Banchflower unsplash)

Protetores desconhecidos

Meu primeiro anjo do caminho, a senhora do metrô, sumiu sem que eu pudesse agradecer. Foi há muitos anos. Sem seu estranho incentivo, eu não conheceria os outros anjos. Como as resilientes mulheres da família de Jurga, que me acolheram em sua terra lituana recuperada da condição de fazenda coletiva soviética; ou seu generoso marido Martynas, criado perto de uma base secreta de mísseis nucleares e cuja avó perdeu seu recém-nascido num trem para a Sibéria num difícil, quando a Lituânia era dominada pela União Soviética.

Também não teria esbarrado no dr. Al-Jatib quando explorava imprudente o campo de refugiados palestinos de Shatila, Líbano. Anos antes, um jornal publicara a saga de um médico para livrar centenas de pessoas da mira das falanges armadas que invadiram Shatila em 1982. Agora eu estava lá, numa missão. Não estava exatamente confortável – sentia-me sutilmente observada. Eu não procurava por ninguém, mas por acaso avistei um homem muito parecido e logo me lembrei da história publicada no jornal. Ele vinha caminhando na direção contrária e… não é que era ele mesmo? Careca, moreno, gordinho…meio grandalhão. Era ele, sim, e eu o reconheci logo que nos cruzamos. Ficamos amigos. Al-Jatib me ciceroneou às histórias que eu buscava pela região e mudou o curso da minha vida.

Ah, teve o curandeiro que salvou minhas panturrilhas magoadas no Caminho de Santiago. Como remédio de verdade, me receitou desapego do passado. Como é que ele sabia?

Roar me hospedou nas ilhas Lofoten, Noruega. Mal-humorado como ninguém [note que ‘roar’ significa ‘rugido de leão’ em inglês], me ensinou a pescar e a limpar peixe. No país mais caro do mundo, me garanti por 10 dias com o que o Oceano Ártico oferece de graça. Roar apreciava viajantes reais e afugentava [mesmo!] turistas reclamões ressentidos com as durezas fora zona de conforto. Certamente, era um um terapeuta disfarçado…

Ilhas Lofotone (foto de Mike Palmowski)

Valentina cuidou de mim nas 32 horas de uma intimidante viagem até a Ucrânia. Ela apareceu quando uma multidão me engoliu ao entrar sozinha num trem da era soviética e me protegeu até que eu chegasse bem ao meu destino. Durante o trajeto, me alimentou a partir de um sacola de onde não parava de sair comida, e me explicou como as coisas funcionavam para visitantes nesse país ainda pouco acostumado, naquela época, a receber forasteiros. Sem sua ajuda, eu não teria conseguido cumprir minha missão de ir até Chernobyl, o lugar do maior acidente nuclear já provocado pela humanidade, por um motivo que é outra história.

E a Ludmila? Essa “protetora” me alugou um quarto sem água em Yalta (Crimeia) com muita má vontade – não confiava em estrangeiros. Após quatro dias estava enfiando biscoitos e suco na minha mochila e sorrindo com dentões dourados ao certificar-se de que eu estava no ônibus correto quando parti para Odessa.

Teve a motorista de ônibus no interior da França que notou meu banzo [sabe? a melancolia de saudade de casa] pelo retrovisor. Parou no acostamento, abriu a porta automática:“saia, caminhe colina acima por 4 km e você terá uma surpresa.”. Segui as instruções. Entrei num vilarejo medieval resguardado por brumas. Naquela noite, me recuperei no quarto de um castelo só pra mim.

 

Mario, que fugiu da guerra em Moçambique e passou para a África do Sul pela compaixão de uma oficial da imigração, reconstruiu a vida e me ofereceu sua visão genuína e tocante do mundo enquanto me apresentava o país.

E assim, os desconhecidos foram me ajudando a passar de fronteira em fronteira.

Os laços que me unem a cada um deles se desfazem delicadamente com o tempo. Mas nunca serão esquecidos.

Esses amigos são anjos no caminho. Aparecem nas viagens. Ensinam, transformam e vão embora.

 

 

Valentina! Mais um anjo do caminho.

Na velha estação de trem de Varsóvia havia duas categorias de plataforma: as renovadas, com placas coloridas e instruções em inglês; e as antigas, onde as direções apareciam em polonês com letras apertadas em painéis preto e branco. As da primeira categoria estavam reservadas aos trens que iam para o Oeste, rumo  a cidades como Berlim — onde, já no desembarque, o viajante ocidental sentiria-se seguro como em casa. De acordo com a minha passagem, eu deveria me apresentar nas da segunda categoria.

Comparei  as instruções em polonês e ucraniano, no verso do bilhete, com as placas na estação. E saí fazendo meu caminho pelo movimento nervoso das escadas e corredores subterrâneos da Warszawa Centralna.

Mais um lance de degraus acima e… pronto! Meu ponto ficava numa longa plataforma cinzenta, de concreto, tomada por uma multidão zangada que se acotovelava carregando malas e sacolas de náilon, dessas de feira, cheias até quase transbordar.

Viagem de trem

Na plataforma, todos lutavam por um lugarzinho esbravejando, reclamando, conversando num idioma com o qual eu não tinha a mínima afinidade. Aquela era a área reservada aos trens de grande distância que partiam para o Leste e percorriam rotas ainda pouco estruturadas para o turismo. Eu era a única pessoa ali sem poder de comunicação, e viajando até a Ucrânia por lazer e curiosidade.

Acanhada, atrapalhando o movimento e tomando empurrões, fiz as contas: dois ou três fossos nos separavam lá daquelas plataformas novinhas, tão organizadas, tão modernamente europeias, ponto de partida para as seguras e descomplicadas Berlim, Viena, Paris… Minha sensação de pertencimento estava no Oeste, e mesmo assim eu escolhia o obscuro lado contrário, aquele para onde aventureiros normalmente não optavam por ir sozinhos.

A recusa em seguir

Sempre fui movida a medo — e ainda não descobri se isso é bom ou ruim. Quando reconheço o medo, curiosamente, eu não corro na direção oposta, mas ao encontro dele. E luto até que um de nós saia vitorioso e a inquietação acabe.

Às vezes eu ganho, muitas vezes quem ganha é o medo.

Daquela vez, escolhi fugir dele sem nem lutar.

Dei as costas para a plataforma e voltei todo o caminho, abrindo espaço entre estranhos e percorrendo novamente o corredores subterrâneos, escadas e saguão, até sair aflita pela pesada porta principal da Estação Central de Varsóvia. Ao erguer o rosto para puxar fôlego e ar puro, bati os olhos no maior arranha-céu da Polônia.

O Palácio de Cultura e Ciência de Varsóvia é um dos prédios que Stalin espalhou pelos países soviéticos para demonstrar a força da URSS

O Palácio da Cultura e da Ciência de Varsóvia (Pałacu Kultury i Nauki – PKiN), construído quando o país vivia sob a influência da União Soviética, inspira tanto deslumbre quanto ressentimento. A Polônia o recebeu como um  “presente” da URSS, assim como outros países do bloco comunista também receberiam seus arranha-céus stalinistas. Hoje, uma brincadeira popular entre os moradores de Varsóvia insinua que o mirante do PKiN tem a “melhor vista da cidade porque é o único lugar onde o edifício não pode ser visto.” A fascinação por histórias como essa era o que me impulsionava a viajar – especialmente pelo Leste, a despeito de todas as dificuldades que uma jornada pela região, naquela época, poderia envolver.

O conselho do pai

De um telefone público entre o Palácio e a estação, liguei para casa, no Brasil, e comuniquei a meu pai que desistiria de tudo. Estava com medo de viajar sozinha. E ele me apoiou! “Deixa pra lá então, e volta pra casa que assim é mais fácil”, disse.

— Acha que eu sou boba, pai? – bati o gancho do telefone e entrei de volta na estação.

Deu tempo de ouvir o apito soando enquanto eu subia novamente as escadas de acesso à plataforma do trem Varsóvia-Kiev. Tapei os ouvidos e assisti ao gigante de ferro avançando lenta e vigorosamente pelo fosso. Rangia feito coisa velha que era.

Engoli seco. O estômago embrulhou.

Agora, um zumbido tocava dentro da minha cabeça e meu corpo tremia. Era mesmo um trem da era soviética indo para a capital da Ucrânia. Por que mesmo eu queria insistir num país pouco habituado a turistas e que só falava línguas que eu não dominava?

A  multidão me engoliu.

Todos tentavam entrar no trem ao mesmo tempo e, uma vez lá dentro, reivindicavam qualquer lugar onde sentassem. Não havia ordem. Os passageiros se empurravam, gritavam e atiravam as sacolas nas prateleiras. Um homem de quepe e apito berrava comigo em russo – ou seria ucraniano? –  apontando impaciente para minha passagem e bolsa.

Eu não conseguia pensar direito. Tinha a mente turva. Não entendia os gritos, os gestos e nem os números impressos no bilhete e nas poltronas. Se houvesse um lugar para mim ali, já estaria tomado.

Então veio o som das portas dos vagões se fechando. Blam!

Uma a uma. Blam!

Logo seria a vez da porta do meu vagão e aí o trem partiria comigo lá dentro.

“Não quero!”. Corri para a porta e iniciei a descida pela escadinha de ferro. Aquela história de viajante solitária e corajosa fora apenas uma mentira que contei por muito tempo – e terminava agora.

A ajuda inesperada

Nunca cheguei a pisar no chão da plataforma. Em vez disso, uma força me sugou de volta para dentro do trem.

A porta se fechou. Blam! Ouvi o ferrolho. O trem iniciou seu deslize.

Arrastada em marcha à ré vagão adentro, entregue ao destino e sem chance de reação, fui socada numa grande cabine vazia com dois sofás-cama. Olha, até que nada mal…

Pude então ver o rosto da mulher de cabelos pretos longos, minha algoz. Ela me soltou e correu para fora da cabine. Bateu a porta e me trancou lá dentro!

Do lado de fora, meteu-se numa conversa apoquentada com o funcionário do trem. Deu um último grito (acho que foi mais para um tipo de ordem) e entrou na cabine.  Ajeitou-se com pressa e ansiedade, tomou fôlego e se apresentou.

“Sou Valentina. Você está segura agora”.

Proteção mágica e desconhecida

O doce inglês com sotaque estrangeiro de Valentina me acalmou naquele mesmo instante e pelas próximas 20 horas de viagem até Kiev. Sentávamos uma de frente para a outra, cada uma num sofá.

Durante o trajeto, Valentina dividiu comigo melancia, pão doce, iogurte e linguiça tirados de um farnel que parecia não ter fundo. Emprestou xale e travesseiro quando me deitei vencida pelo cansaço. Fez a tradutora quando passaram o bilheteiro, os guardas de fronteira e a moça do chá, que nos abastecia de bebida quente em copos de vidro com elegantes suportes de metal trabalhado. Notava-se que os suportes eram antigos. —  Soviet times! –, disseram Valentina e a moça do chá juntas quando percebi que a base de um deles ainda levava a marca de uma foice e um martelo.

Conversamos sobre família – ela me mostrou algumas fotos – e coragem de sair pelo mundo fazendo escolhas solitárias que dão medo. Ela me ensinou a como agir na Ucrânia e a como encarar as primeiras dificuldades de comunicação e cultura quando pisasse em Kiev.

De onde vinha essa ajuda?

Valentina foi uma ucraniana que notou minha aflição de longe, desde a chegada na estação. Compadecida, me ofereceu um lugar em sua cabine exclusiva e convenceu o guarda do trem de que esse era o melhor jeito de se tratar uma estrangeira assustada, perdida e com a poltrona tomada.

Nos despedimos para sempre pela janela de um táxi. Valentina deu três tapas no teto do carro, liberando o motorista para me levar em segurança ao conjunto de apartamentos-colméia onde estudantes estrangeiros – especialmente chineses – se hospedavam na cidade. Não trocamos contato.

Por um mês, consegui explorar a Ucrânia sozinha.

Como eu já disse, é encarando o medo que termino por vencê-lo e me torno a mais… valente!

Algo me diz que dessa vez, o sucesso da missão teve a misteriosa mão de uma amiga.

Valentina foi mais um anjo no meu caminho.

Medo vencido (ilustraçao de Lu Otto)

Viajante Independente: LIÇÃO Nº 2

Uma vez que você começa o movimento, não há lugar para a preguiça.

É preciso fazer deslocamentos. E eles podem ser cansativos tanto para o corpo quanto para a mente.

Você sobe e desce de trens, ônibus, aviões… Se acomoda em um lugar, mas então logo precisa partir. Repete o processo de procurar hospedagem, compreender o trajeto, ler cardápios esquisitos, comunicar-se em outra língua, enfim reaprender como a banda toca a cada próximo destino

Cansa lidar com imprevistos e com a bagagem a carregar.

 

Perder-se é divertido, mas também cansativo quando se está só – pois é preciso manter o estado de alerta constante.

Eu relutei em contar, mas lá vai: no meio de uma praça em Istambul tem um obelisco de – simplesmente! – 3500 anos e que um dia foi trazido do templo de Karnak, no Egito, para a Turquia na maior cara de pau! Esse obelisco viu corridas de bigas, execuções públicas, lutas de gladiadores, eventos com imperadores…Viu as tretas do Império Bizantino por uns 1000 anos e os pipocos do Império Otomano por uns 400.

Mas num dia de chuva em Istambul, eu passei reto por ele correndo com fome na direção de um McDonald´s. Como se aquele obelisco milenar fosse um poste da Copel! (Copel é a Companhia Paranaense de Luz, e eu sou filha de um engenheiro que ajudou a construir essa empresa)

Vergonha, né?


É que eu não aguentava mais!!!
 Istambul é tão valiosa em informações que acabei exausta mental e fisicamente. Só queria comer num lugar onde não fosse preciso usar o cérebro para escolher algo do cardápio.

Pronto, falei! E a imagem aqui é antiga porque no esgotamento eu não fiz a minha própria foto.

Livro A Coragem de Ser Imperfeito

O atrevimento de se expor – O que aprendi com Brené Brown, autora de A Coragem de Ser Imperfeito

Conhece aquela sensação de estar tudo bem e, de repente, a lembrança de ter se revelado demais invade sua mente e você, de vergonha, quer se enfiar debaixo das cobertas? Eu conheço.

Este livro (no foto) que eu folheio com as unhas azuis foi escrito por uma autora que admiro – Ana Holanda, de Como se encontrar na escrita. Eu chorei bem na frente dela no dia em que ela escreveu a dedicatória e me contou que me abriria uma porta por notar minha potência como pessoa que escreve. Depois, eu passei a noite me enfiando debaixo das cobertas por ter arrancado minha armadura naquela hora. Conhece aquele autoconstrangimento? É como vergonha alheia — mas como é da gente mesmo, a sensação fica um pouco pior.

Tenho passado minha vida toda remoendo as atitudes em que arranquei a tal armadura e fiz papel de amadora revelando de cara minhas pretensões, chorando rasgado a cada emoção, enfim, me permitindo ser vista. Nos últimos anos me revelei como se não houvesse amanhã. Logo, afoguei minha cara no travesseiro diversas vezes.

Talvez eu não seja tão banana

Até que tomei consciência de que talvez eu não seja tão banana quanto pensava. Descobri outro livro: A Coragem de Ser Imperfeito, de Brené Brown, uma doutora que defende que bananas como eu são… os verdadeiros ousados. 

“Pessoas corajosas são aquelas dispostas a abandonar quem pensavam que deveriam ser a fim de ser quem elas realmente eram”, diz Brené Brown.

Um papo com Brené Brown

Dra. Brown trouxe luz aos dias em que, tomada pela certeza de que eu iria ao encontro do meu propósito, escrevi emails sinceros e expus minhas ideias tolas para as pessoas que me abririam caminhos. Ela deu um nome a esse tipo de atitude: a beleza da disponibilidade de se fazer algo quando não há garantias.

E mais: quando eu comecei a postar uns vídeos de cara lavada e nenhum preparo querendo explicar o que são viagens transformadoras, a Dra. Brown saiu-se com essa: “a vulnerabilidade é o centro da vergonha e do medo, mas parece que também é a origem da alegria, da criatividade, do pertencimento e do amor”.

Antes que o ano termine – e já tarde nessa vida – fui devorando as ideias de Brené Brown enquanto me lembrava das inúmeras vezes em que rompi protocolos para demonstrar sinceramente o quanto eu almejava determinada oportunidade. E o quanto o medo de ter parecido inadequada me assombrava em seguida.

Deixa pra lá!

E ela me lembrou de que, mais do que cismar com o espelho e com nossa suposta inadequação, talvez seja interessante ser simplesmente autêntico e real. Sim, deixar pra lá mesmo… Ligar na letra F, sabe como? E nos deixar ser vistos, vistos profundamente, amar com todo nosso coração mesmo que não haja garantias.

Brown sugeriu que paremos de catastrofizar ao assumir o amor por algo e comecemos a acreditar que somos suficientes para estar naquela situação.

Chegamos ao ponto de, em vez de respeitar e admirar a coragem e a ousadia que estão por trás da vulnerabilidade, abrimos espaço para medo, desconforto, julgamento e crítica.

Então, pra mim… Chega!

Deu tempo, antes do fim do ano, de assumir que minha entrega sincera – essa que me torna vulnerável aos olhos do mundo – também determina o alcance da minha coragem e da clareza do meu propósito.

Meu nome é Juliana Reis. E assim falei!

Aquele “quê” da pessoa plena (segundo a Dra. Brown)

1. Cultiva a autenticidade; se liberta do que os outros pensam.

2. Cultiva a autocompaixão; se liberta do perfeccionismo.

3. Cultiva um espírito flexível; se liberta da monotonia e da impotência.

4. Cultiva gratidão e alegria; se liberta do sentimento de escassez e do medo do

desconhecido.

5. Cultiva intuição e fé; se liberta da necessidade de certezas.

6. Cultiva a criatividade; se liberta da comparação.

7. Cultiva o lazer e o descanso; se liberta da exaustão como símbolo de status e da

produtividade como fator de autoestima.

8. Cultiva a calma e a tranquilidade; se liberta da ansiedade como estilo de vida.

9. Cultiva tarefas relevantes; se liberta de dúvidas e suposições.

10. Cultiva risadas, música e dança; se liberta da indiferença e de “estar sempre no

controle”.

Tempelhof, Berlim: a redenção do aeroporto nazi

Quando Adolf Hitler chegou ao poder em 1933, ele quis construir uma grande porta de entrada  para o território do Terceiro Reich. Então, ele mirou Tempelhof, considerado na época o maior aeroporto da Europa. E ali, naquele terreno pediu ao arquiteto nazista Ernst Sagebiel que operasse uma transformação. 

Sagebiel obedeceu e construiu um colosso.

O campo de Tempelhof havia pertencido à Ordem dos Cavaleiros Templários na Idade Média (daí o nome) e sido o berço da famosa companhia de aviação alemã Lufthansa. 

O gigantesco terminal semicircular de Tempelhof foi inaugurado em 1939, remetendo às asas da reverenciada águia-símbolo da Alemanha nazista. Era um aeroporto descomunal, que combinava com a megalomania de Hitler e acolhia os aviões em área coberta.

Mas Tempelhof tinha ainda mais espaço. Então a Gestapo (a polícia secreta do estado nazista) achou conveniente instalar ali uma prisão. Na Columbia-Haus jornalistas, políticos, judeus e outros “inimigos” do regime nazista seriam encarcerados — enquanto voos comerciais iam e vinham, sem problemas nem interrupções.

Não é difícil encontrar registros de Adolf Hitler discursando diante de milhares de pessoas sob bandeiras nazistas. Pois alguns desses massivos eventos foram realizados na ampla áreaTempelhof.

Detalhe no aeroporto Tempelhof. Foto de Martin Lostak_unsplash

 

De infame aeroporto nazi a ponte de salvação

O que ninguém imaginava era que, com o fim da Segunda Guerra Mundial e com o desmoronamento dos planos do Terceiro Reich, esse controverso local pudesse salvar a vida dos berlinenses. Mas foi o que aconteceu.

Com a rendição nazista em 1945, a derrotada Alemanha foi dividida. Franceses, britânicos e americanos ocuparam a metade ocidental do país, enquanto os soviéticos ocuparam a metade oriental. Berlim foi um caso único: foi repartida por dentro, com cada país cuidando de um setor na cidade. Mas como estava na metade oriental da Alemanha, terminou completamente cercada pelos soviéticos. Berlim, então, se tornou uma ilha capitalista dentro de um território comunista.

Ninguém entra em Berlim Ocidental por terra

Três anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, as forças soviéticas bloquearam os acessos à Berlim controlada pelos ocidentais. E isso impediu o fornecimento de alimentos, medicamentos e tudo o mais que era importante para vida de dois milhões de pessoas que moravam lá dentro. 

Estava interrompido o fornecimento apenas via terrestre, diga-se. Afinal, se o aeroporto de Tempelhof estava em Berlim Ocidental, o acesso pelo ar ainda existia

E foi assim que, diariamente, duas toneladas de mantimentos passaram a chegar pelo ar –  mesmo com pilotos tendo que sobrevoar o inimigo – mantendo vivos os moradores da Berlim cercada. 

A tensa ponte aérea durou 15 meses e tornou-se uma das mais célebres proezas da história da aviação mundial.

 

Depois de milhares voos, o bloqueio terminou em maio de 1949

Pista de bike no século 21

Voos civis seguiram descendo no Tempelhof ligando Berlim ao mundo ocidental pelos anos seguintes, durante a Guerra Fria. Em 1989, veio a unificação alemã com a queda do Muro de Berlim, que separava os dois lados da cidade, mas o aeroporto continuou funcionando. Até que os voos maiores foram  gradualmente sendo desviados a outros aeroportos mais modernos da cidade.

O lugar que salvou Berlim do isolamento ainda chegou a ser pouso de companhias aéreas low cost até há pouco tempo. Então, um dia, deixou de existir como aeroporto.

Em 30 de outubro de 2008, o último voo regular decolou de Tempelhof às 22h. À meia-noite as luzes do pátio e das pistas de Tempelhof foram desligadas para sempre.

Morria o emblemático aeroporto que salvou da fome Berlim Ocidental. Nascia em 2010, no mesmo lugar, uma das maiores e mais queridas áreas de lazer da cidade.

Moradores do bairro vizinho de Schillerkiez têm em Tempelhof uma horta comunitária e berlinenses em geral fazem piqueniques e churrascos, pedalam, deslizam pelas pistas com skates e pranchas de windsurf com rodas, soltam pipas e jogam bola.

Eu, de bike, flanando pela pista de pouso do aeroporto Tempelhof. Foto de Rafael Carvalho do blog Esse Mundo é Nosso.
Como chegar 
Cheguei lá de bicicleta seguindo o mapa da cidade.
Mas dá para ir de metrô. É só parar em uma dessas estações: Tempelhof, Paradestr ou Platz der Luftbrücke.

*foto de abertura: Lars-schneider_uns

Shanti Gaia Serra Dona Francisca (SC)

A mil metros de altitude, no alto da Serra Dona Francisca – a cerca de 100 km de Curitiba (PR) ou 40 km de Joinville (SC) – uma casa acolhedora se ergue rodeada de gramados verdes, hortas e paredões de rocha cobertos de vegetação.

Lá dá para caminhar, meditar, fazer cursos ou simplesmente nada.

Terra de Paz é o significado do termo em sânscrito que batiza o lugar: Shanti Gaia.

Terapias holísticas, alimentação vegana (sem procedência animal) e tranquilidade formam o pacote que a psicóloga transpessoal e terapeuta ayurvédica Malú Krelling e seu marido, Roberto Krelling, oferecem a quem busca se revigorar e se autoconhecer.

Nadismo

Lá é possível passar um dia ou um final de semana dedicado à meditação, à prática de yoga, caminhadas… Ou nada disso! Os proprietários chamam essa última opção de nadismo. 🙂

Se o hóspede quiser simplesmente contemplar das janelas panorâmicas o cenário mergulhado em quietude absoluta – sem TV, sem alimentos industrializados e com roupas simples e confortáveis – e silenciar a mente, as expectativas, os medos e as frustrações, isso é possível.

A confraternização também é bem-vinda na aconchegante sala panorâmica com lareira, sofás e cadeiras que abraçam.

“As pessoas já têm a paz dentro delas, só precisam se dar o tempo para acessá-la”, diz Malú, que comanda a cozinha, enquanto o marido cuida da horta e abre trilhas.

Oficinas

Shanti Gaia também promove oficinas de desenvolvimento pessoal, cursos de reiki e de culinária vegana, retiros de meditação e  programas de desintoxicação. Mas nada disso envolve sacrifício ou sofrimento: a comida servida por Malu é tão reconfortante e deliciosa que você nem vai se lembrar do que come em casa; o conforto dos quartos e das instalações não conta com nenhuma ostentação e, mesmo assim, pode ser classificado como luxo – o amor e o respeito nos detalhes e os acabamentos de alta qualidade transformam a experiência.

Por fim, só o caminho até Shanti Gaia – por estradas cercadas de araucárias –  já vale a viagem. E se eu não conhecesse Malu, diria que a sensação de paraíso em Shanti Gaia talvez venha do fato desse pedaço de terra, no alto da montanha, estar mais perto do céu.

ESTRUTURA

Quartos privativos e compartilhados, trilhas, bosques, salas de yoga e massagem, horta e árvores frutíferas. E culinária vegana.

CONTATO
Shanti Gaia

COMO CHEGAR

Subindo a Rodovia SC-418 vindo de Joinville em direção a Campo Alegre, entre à esquerda no KM 38,5 logo após o Posto da Polícia Rodoviária, placa Rio dos Bugres.

Seguindo por mais 3,5 km você encontrará o portão principal de Shanti Gaia. Adentrando por mais 800 metros, chega-se à pousasa Shanti Gaia

“Que Caminho Você vai seguir? Sabes o que te move e aonde queres chegar quando o final de tua vida terrena chegar? Praticas o Autoconhecimento? Vais dedicar o feriado para ocupar o tempo com o quê? Quando olhas para o teu passado,vestá valendo a pena essa história que estás escrevendo a cada dia de sua vida?Se não houver perguntas é porque não há mais curiosidade e vontade de conhecer além do que a maioria da humanidade conhece:Comida, Festa,Trabalho, Viagens, Apego com a Família, e um pouco de religião para pagar os pecados.

Quem tu és?

De onde tu vens?

Para onde tu vais?”

(Malú Krelling)