“Pega esse livro e vai com ele”, disse minha amiga brasileira M.J., uma viajante experiente naqueles tempos. Ela me entregou um guia de albergues grandalhão feito uma Bíblia e ele pesava bastante, mesmo com as páginas feitas em papel jornal. M.J, estava me ensinando a como viajar pelo mundo. “Sem ele você não vai se achar; aí tem endereços e os telefones de que precisa”.

Naquele tempo, não existiam as buscas no google e a tecnologia para pesquisar viagens não era assim grande coisa.

LONELY PLANET 

Houve um tempo em que viajávamos sem internet. E mesmo quando ela chegou, houve também um tempo em que viajávamos sem internet móvel. Pois é, a gente não tinha celular, nem sites com sistemas de reservas de hospedagem como booking ou airbnb… Ter uma lista de acomodações em mãos é que nos dava o norte. Muitas vezes o destino era decidido de acordo com a possibilidade de hospedagem. 

Os guias de viagem eram compilados de experiências vividas por viajantes que vieram antes e catalogaram o caminho para nós. Lonely Planet era um dos principais e suas edições em papel eram dificilmente encontradas em português. O casal de ingleses que começou montando essa verdadeira bíblia viajante foram pioneiros de um mercado de livros, revistas e guias de viagem a partir de um hobby que inventaram ainda nos anos 1970: eles gostavam de organizar suas viagens para mostrá-las aos amigos.

Tradicional versão do guia da Lonely Planet para viajar barato e independente na Europa.

Sem um guia de viagem Lonely Planet na mão, muitas pessoas não teriam nem começado a pensar em viajar de forma independente. 

Assim, na semana seguinte em que ganhei o guia de albergues da amiga, estufei a mochila com mais 5 quilos de guias de viagem, mapas e livretos de horários de trem e barcos por toda a Europa e Oriente Médio – tudo em papel. E parti. Cuidava daquela minibiblioteca ambulante como cuidava da minha vida. Era a minha bússola

O QUE SE FAZIA CHEGANDO AO DESTINO

A cada desembarque, a mesma rotina: uma visita ao escritório de turismo da cidade —  lá, eles abriam um mapa em papel e iam nos dizendo onde comer, onde dormir, o que visitar, como se locomover pela cidade… Bom mesmo era quando o escritório de turismo ficava já na estação ou no aeroporto. Às vezes, ficava numa praça principal ou em outro ponto de referência. Aí era preciso já desembarcar com alguma noção de como se locomover até lá. Por isso, era importante ter o próprio mapa, que normalmente vinha impressos nos guias de viagem que carregávamos.

Assim, a operação de chegada era umas das que causava mais insegurança no viajante solitário e independente — afinal, imagine chegar num lugar desconhecido em horário em que os principais serviços ao turista estivessem fechados

COMO ERA A HOSPEDAGEM

Boa parte da viagem era gasta na batalha da hospedagem. Não existiam aplicativos de reservas, então ficava por nossa conta descobrir e reservar a cama do dia, ou a do dia seguinte. Para quem viajava sem planejamento, esse era um dos principais desafios.

Às vezes podia acontecer de você chegar num lugar e não ter mais cama no hotel, pensão ou albergue [hostel]. Teria que usar o guia para encontrar outro lugar, e também seu cartão de telefone público – que nem sempre era internacional. A cada país ou cidade, o sistema de telefone podia ser diferente e aceitar ou não seu cartão. Do outro lado da linha alguém atendia e qualquer que fosse o idioma, o ideal era usar o inglês decorado: “I´d like to make a reservation”.

E assim a gente ia achando bons lugares ou caindo em muitas roubadas — como no albergue de Budapeste, cujo dono vendia drogas; ou no de Cracóvia, que me trancou para fora debaixo da neve porque passei do horário [curfew] – lá tinha toque de recolher.

REGRAS E BED BUGS

A maior parte das acomodações eram albergues. No início, eles faziam parte de uma rede internacional de albergues, cheia de regras e que só atendia a quem tivesse uma carteirinha previamente expedida. Depois começaram a surgir os albergues independentes, que poderiam ser um paraíso ou lugares sujos e mal cuidados — acertar era parte da experiência viajante. Foi num albergue independente nos Alpes suíços que realizei meu sonho de morar na montanha. O lugar era tão incrível, que acabei ficando não por semanas ou meses, mas por anos. Mas isso é outra história. 

É importante lembrar que o principal modelo de acomodação nos albergues eram os dormitóriosquartos coletivos que podiam contar com 3 até dezenas de camas. Alguns eram mistos, outros não. Uns eram silenciosos e cheios de regras; outros, pura bagunça. Havia aqueles que ofereciam lençol e travesseiro, e aqueles que cobravam pela roupa de cama.

Albergue bem arrumadinho em Rotterdam, Holanda. (foto de Marcus Loke para Unsplash)

 

Alguns albergues permitiam que usássemos nossos sacos de dormir e aí que entrava o bed bug [ou percevejo]. Esse bichinho mordia viajantes e causava alergia e infecções de pele – às vezes febre, como aconteceu comigo. O bed bug costumava pegar carona e viajar nos sacos de dormir e roupas  — e assim ele se instalava no colchão do próximo albergue a ponto de em alguns momentos do fim do século 20 e início do 21 tornar-se um verdadeiro terror nas redes de albergues da Europa.

LOCKERS 

Lockers eram os armários para bagagem estrategicamente colocados nas estações de trem ou de ônibus, e nos aeroportos. Eles permitiam que o viajante independente pudesse largar a bagagem enquanto saía pela cidade para procurar acomodação ou para simplesmente fazer uma visita de um dia antes de partir para outro destino. Logo, o custo dos lockers também era computado no planejamento do dia: eles podiam custar de centavos a dezenas de euros ou dólares.

Lockers em Berlim: que alívio deixar as coisas aí e sair pra passear (Bekky Bekks Unsplash)

A França era um lugar difícil para fazer essa manobra de visitar cidades por um dia e partir para outro destino. É que lá os lockers eram proibidos devido a um atentado: no passado, alguém colocou bombas em alguns deles e o resultado levou à proibição dessa praticidade no país inteiro.

Nesse caso, um viajante independente podia até ter a sorte de encontrar alguém que guardasse sua bagagem [como eu fiz em Cognac, num passeio repleto de confusões]. Por outro lado, numa ilha dinamarquesa, me deparei com lockers enormes e caros – não pensei duas vezes em deixar minha bagagem dentro de um e não trancá-lo [o lugar era conhecido pela segurança]. Quando voltei, 12 horas depois, lá estavam meus pertences intactos. 

A IMPORTÂNCIA DO MAPA EM PAPEL

Uma das cenas mais comuns: a gente não tinha GPS nem celular. (Nick Seagrave Unsplash)

Definíamos nossos destinos no bate-papo e rabiscando os mapas em papel. Eles faziam o “cruzar fronteiras” parecer um jogo de tabuleiro e isso era divertido, desafiador e empolgante – além de informativo. Foi assim que um dia eu estava em Copenhagem e saí traçando uma linha que me levou a Roma, para então atravessar a Grécia, entrar na Turquia, pular para a Síria e estacionar no Líbano.

Não havia GPS e o tempo de viagem variava bastante de acordo com o tipo de transporte que encontrávamos para cruzar cada linha rabiscada no mapa.

COMO NOS COMUNICÁVAMOS COM A FAMÍLIA [OU NÃO]

No filme A Praia, com Leonardo di Caprio, ele finalmente se comunica com a família usando a internet discada de um cyber café após meses vivendo em uma comunidade de viajantes numa ilha tailandesa. Era mais ou menos assim mesmo. Semanas podiam se passar sem que nos comunicássemos com a família ou os amigos, uma vez que a internet não existia em todo lugar e as ligações internacionais eram bem caras. 

Cyber cafés existiam em alguns lugares e cobravam o equivalente a 1 a 5 euros por 30 minutos de uso do computador dom internet. Era quase o suficiente para mandar um email para os pais avisando que estávamos vivos ou usar o messenger ou msn, uma ferramenta de comunicação instantânea pelo computador. Aliás, era bem comum receber de tempos em tempos um email vindo de casa com o assunto “onde está você?“.


Ah, smartphones não existiam e muito pouca gente tinha celular..

Muitos viajantes devem se lembrar da EasyEverything, uma rede de cyber cafés com jeito todo moderninho e quantidade enorme de computadores [como essa mostrada aí no filme do Di Caprio]. Ela existia em cidades como Munique, Berlim, Barcelona… Nessa última, geralmente as unidades eram frequentada por batedores de carteira que se valiam da nossa distração para levar as mochilas depositadas no chão ou atrás do encosto das cadeiras.

Telefones públicos podiam ser usados com cartão, mas esses nem sempre valiam se comprados em um país e usados em outro. Com a variação de tarifas, também era difícil saber quando os créditos acabariam [e às vezes eles acabavam antes da gente completar a reserva da acomodação]. Privilegiados podiam ligar para casa por meio de um código da Embratel, a cobrar,  e mudava de número a cada país. E esse código não era tão fácil de ser descoberto.

Enfim, toda essa dificuldade, tornava a viagem uma grande aventura solitária e um desafio diário, uma vez que planejar caminhos sem comunicação certa era a condição.  

LIVROS = COMPANHEIROS DE VIAGEM 

Lia-se muito pelo trajeto. Ler aplacava a solidão do viajante sem celular. Estantes improvisadas em redutos mochileiros mantinham-se vivas com o ir e vir de títulos. Conheci Les Miserábles, de Victor Hugo, cruzando a Ucrânia. Ele ficou numa pensão da Crimeia, de onde levei On The Road [o clássico beatnik de Jack Kerouak atravessou o Mar Negro comigo e ficou na Turquia].

Viajantes lendo (foto de Rathish Gandhi Unsplash)

E SOBRE AS FOTOS? 

O tempo do viajante não era gasto nas milhares de tentativas de selfies perfeitas — aliás, essa palavra nem existia —  e nenhum lugar se esforçava para ser “instagramável”.  Às vezes, a gente só trocava a posição da câmera e a foto, de trás para frente, dava certo ou não. Mesmo no lugar mais bonito do mundo ninguém enlouquecia para sair bonito na foto ou para provar que estava lá.

Selfie: hábito que não existia, portanto não tirava a nossa paz (foto de Cristina Zaragoza)

E AS PASSAGENS?

Sem a tecnologia dos aplicativos e da internet móvel, pesquisar passagens baratas era um pouco mais complicado. Passes de trem pela Europa facilitavam a vida para quem pretendia descer no destino que bem entendesse e ofereciam descontos para menores de 25 anos. Depois, surgiram as companhias de ônibus fazendo parecido.

Promoções de passagens de último minuto eram anunciadas nas estações e às vezes um trajeto longo chegava a ser oferecido pelo equivalente a 10 euros. E quando as companhias aéreas de baixo custo [low cost] surgiram, o mundo ficou ainda menor – embora fosse parte da jornada viajar por terra observando a troca de cenário.

 

  • Você também pode escutar essa história em formato de podcast acompanhando a ilustração feita exclusivamente pela artista Lu Otto, uma leitora que mora em Los Angeles e gosta de ilustrar o que lê. 

 

Como era ser viajante independente na era pré-Google?

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