Quando minha amiga Jurga me entregou o mapa da Lituânia, eu me propus a progredir aos poucos fazendo uma day-trip de bicicleta todos os dias — sempre voltando ao mesmo ponto no fim da tarde. Mas algo de fantástico acontecia a cada vez que eu deixava o limite urbano de Klaipeda e adentrava a ciclovia que cortava o país. É que certas histórias que vivi naquele caminho não caberiam no tempo e na distância que eu percorria.

 

                                 A ciclovia, a floresta, eu e a linha de trem atravessando os Bálticos

A Lituânia foi o último pedaço da Europa a se converter ao cristianismo. Dizem que rituais pagãos seguiram acontecendo no país até o século 20. Dizem… Porque às primeiras pedaladas eu já me via empurrada para dentro de um universo à parte, um mundo de coexistência harmoniosa entre a presença humana e os elementos da natureza — algo como um vínculo espiritual entre os dois.

Ao longo da via, cruzes e símbolos folclóricos esculpidos em madeira iam aparecendo, revelando uma forte presença mística tanto pagã quanto cristã. E eu seguia pedalando.

Jodkrante
                                            Esculturas de madeira que eu encontrava pelo caminho

Nos bosques de pinus acarpetados por líquen, cogumelos eram colhidos por gente silenciosa vinda–sei–lá–de–onde carregando cestinhas. Entre uma curva e outra, o chão da floresta às vezes virava areia. A bicicleta quase escorregava. Surgia, então, uma falésia, uma praia deserta, alguém sozinho colhendo âmbar… E o mar prateado

No trajeto, era comum passado virar presente .

Uma vez meu pneu topou num pedaço de concreto. Era ele, o gigante MEMEL NORD, que vinha se desenterrando de uma duna entre o bosque e a beira do mar, espalhando areia e galhos num moroso e mórbido movimento.

— Então, ele existia mesmo…Até então, eu achava que era boato.

Memel Nord

Memel Nord é um bunker, um bruto de um abrigo militar subterrâneo, blindado e fortificado, escondido na areia entre a praia e a floresta desde a 2ª Guerra Mundial. Foi descoberto recentemente.  Atrás de uma porta de aço, descobri que seus corredores percorriam o tempo guardando um pesado arsenal tanto alemão quanto soviético, uniformes militares, capacetes arruinados por buracos de bala, louças com a marca da S.S. [a organização paramilitar de elite nazista]... 



Quando cheguei ao telhado, me sentei sobre a artilharia antiaérea e acompanhei, ali sozinha, ao mais insólito pôr do sol da minha vida. Do topo do bunker, uma estranha sensação de embriaguez e dor de cabeça me dominavam. Tomei um gole vigoroso da água que levava no bornal, deslizei pela laje, montei na bicicleta e pedalei firme, retomando a viagem.

Pelas colinas dessa senda encantada é que fui conhecendo o que significa a plena presença – o tal  do“agora” de que tanto se fala por aí.

Um dia pedalei com mais empenho e acabei entrando na Curlândia — uma faixa de areia que avança 100 km pelo mar báltico dando num território russo chamado Kaliningrado.

Formada há mais de cinco mil anos, a Curlândia confundiu antigos cavaleiros e mercadores que pensavam ter encontrado ali um atalho entre os reinos de outro tempo. É que o  sopro forte dos ventos da região fizeram dunas gigantescas apagarem assentamentos humanos. Hoje os grandes montes de areia estão domados por os pinheiros plantados por toda a extensão da Curlândia. Mas não totalmente. Aqui o vento uiva e pode facilmente retorcer o pneu da bicicleta, assim como fez os troncos e galhos das florestas dançantes que beiram a ciclovia. 

A ciclovia na Curlândia indo até Kaliningrado (foto de Marija L @marliu)

Aliás, férias aqui na península de Curlândia, até 1990, foi privilégio reservado apenas aos amigos do regime soviético. (O que não foi, diga-se de passagem, o caso da família da Jurga, a amiga que me forneceu o mapa para essa terra excêntrica.)

Nida
Nida: vilarejo na península da Curlândia

Certa vez, ainda na península, quase atropelei um grupo de pessoas que atravessava meu caminho carregando flores e tochas acesas. Após pedir desculpas, decidi segui-las discretamente. Foram até um vilarejo às margens de um pântano em brumas e embarcaram em canoas. Lá no meio do pântano, atearam fogo em grandes figuras mitológicas de madeira erguidas sobre a água. Ali, de forasteira, notei que a ordem geral era deixar queimar  o que já não servia mais. A tarde caía e aquele era um ritual celebrando a partida do verão e a chegada do outono.

Bem mais tarde ainda naquele dia  —  quando retornei ao meu ponto diário de partida — , Jurga e seu marido Martynas me convidaram para jantar o peixe da lagoa que se forma entre o continente e a  península Curlândia. Esse peixe é capturado apenas durante o alto inverno, quando sobe até a superfície congelada. É uma iguaria especialmente oferecida a amigos verdadeiros ou a quem transpõe uma jornada e volta transformado. Como aconteceu comigo na encantada ciclovia Eurovelo 10.

Ilustração de Lu Otto sobre eu e a ciclovia mágica na Europa Báltica
IMPORTANTE

ONDE ME HOSPEDEI

Jurga e Martyna são donos do albergue (hostel) e apartamentos para alugar onde fiquei na Lituânia, na cidade de Klaipeda. São meus velhos amigos. Recomendo a passagem por lá e os passeios com eles pelo país.

ONDE FICA ESSA TAL CICLOVIA

A senda mágica que percorri diariamente, sempre voltando a Klaipeda, existe  e faz parte da ciclovia internacional Eurovelo 10.

Clicando aqui você pode ouvir essa história
em formato de PODCAST também. 

 

Uma ciclovia encantada na Europa báltica

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