Os Anjos do Caminho

A porta do metrô se abriu. Do lado de fora ela me olhava fixamente, como se estivesse me esperando. Ignorava os empurrões da multidão e não tirava os olhos de mim. Cabelos brancos, cachorro no colo. Acenou e fez um gesto como se dissesse “siga-me”.

Tentei acompanhá-la transpondo as escadas, atrevessando espaços estreitos me desviando das pessoas… Eu não tinha escolha, estava assustada e não conhecia ninguém. Entrei naquela por falta de opção e pra valer.  Ela dobrou uma, duas, três esquinas e então…parou!  Apontou para o final de beco.

— Allez! – disse aquela mulher de figura tão francesa… [segundo o estereótipo que a maioria de nós confere aos franceses, né]. “Allez” é o nosso “vá”. E lá estava ele… O lugar onde eu ia me instalar em segurança, o  único espaço com uma cama disponível na cidade aquela noite na cidade. Era um albergue nos limites de Paris. Se o mundo já era desconhecido para mim, imagina um bairro afastado em Paris. Passava das 21h, fazia frio e chuviscava. Tudo escuro já.

Viajante de primeira viagem

Essa foi a largada para minha primeira grande viagem. Eu vinha de uma hora em pé dentro de um metrô em pane nos subterrâneos de Paris. Nunca tinha feito uma viagem internacional sozinha. Penava metida num casaco pesado, trazendo a mochila estufada com o desnecessário.

Eu era inexperiente. Chorei discretamente encostada num dos apoios de alumínio do vagão, morrendo de calor e medo. Eu quis desistir de continuar viajando, talvez tivesse dado um passo maior que a perna. Até que a porta se abriu na última estação nos limites da cidade e ela não deixou abandonar o sonho.

Não faço a mínima ideia de que, ela era, de como se posicionou justamente na porta de onde eu sairia e de onde vinha aquela certeza de que eu precisava de ajuda. Mas nunca me desencantei da crença de que ela estava ali por mim.

Metrô em Paris (foto de Lee Banchflower unsplash)

Protetores desconhecidos

Meu primeiro anjo do caminho, a senhora do metrô, sumiu sem que eu pudesse agradecer. Foi há muitos anos. Sem seu estranho incentivo, eu não conheceria os outros anjos. Como as resilientes mulheres da família de Jurga, que me acolheram em sua terra lituana recuperada da condição de fazenda coletiva soviética; ou seu generoso marido Martynas, criado perto de uma base secreta de mísseis nucleares e cuja avó perdeu seu recém-nascido num trem para a Sibéria num difícil, quando a Lituânia era dominada pela União Soviética.

Também não teria esbarrado no dr. Al-Jatib quando explorava imprudente o campo de refugiados palestinos de Shatila, Líbano. Anos antes, um jornal publicara a saga de um médico para livrar centenas de pessoas da mira das falanges armadas que invadiram Shatila em 1982. Agora eu estava lá, numa missão. Não estava exatamente confortável – sentia-me sutilmente observada. Eu não procurava por ninguém, mas por acaso avistei um homem muito parecido e logo me lembrei da história publicada no jornal. Ele vinha caminhando na direção contrária e… não é que era ele mesmo? Careca, moreno, gordinho…meio grandalhão. Era ele, sim, e eu o reconheci logo que nos cruzamos. Ficamos amigos. Al-Jatib me ciceroneou às histórias que eu buscava pela região e mudou o curso da minha vida.

Ah, teve o curandeiro que salvou minhas panturrilhas magoadas no Caminho de Santiago. Como remédio de verdade, me receitou desapego do passado. Como é que ele sabia?

Roar me hospedou nas ilhas Lofoten, Noruega. Mal-humorado como ninguém [note que ‘roar’ significa ‘rugido de leão’ em inglês], me ensinou a pescar e a limpar peixe. No país mais caro do mundo, me garanti por 10 dias com o que o Oceano Ártico oferece de graça. Roar apreciava viajantes reais e afugentava [mesmo!] turistas reclamões ressentidos com as durezas fora zona de conforto. Certamente, era um um terapeuta disfarçado…

Ilhas Lofotone (foto de Mike Palmowski)

Valentina cuidou de mim nas 32 horas de uma intimidante viagem até a Ucrânia. Ela apareceu quando uma multidão me engoliu ao entrar sozinha num trem da era soviética e me protegeu até que eu chegasse bem ao meu destino. Durante o trajeto, me alimentou a partir de um sacola de onde não parava de sair comida, e me explicou como as coisas funcionavam para visitantes nesse país ainda pouco acostumado, naquela época, a receber forasteiros. Sem sua ajuda, eu não teria conseguido cumprir minha missão de ir até Chernobyl, o lugar do maior acidente nuclear já provocado pela humanidade, por um motivo que é outra história.

E a Ludmila? Essa “protetora” me alugou um quarto sem água em Yalta (Crimeia) com muita má vontade – não confiava em estrangeiros. Após quatro dias estava enfiando biscoitos e suco na minha mochila e sorrindo com dentões dourados ao certificar-se de que eu estava no ônibus correto quando parti para Odessa.

Teve a motorista de ônibus no interior da França que notou meu banzo [sabe? a melancolia de saudade de casa] pelo retrovisor. Parou no acostamento, abriu a porta automática:“saia, caminhe colina acima por 4 km e você terá uma surpresa.”. Segui as instruções. Entrei num vilarejo medieval resguardado por brumas. Naquela noite, me recuperei no quarto de um castelo só pra mim.

 

Mario, que fugiu da guerra em Moçambique e passou para a África do Sul pela compaixão de uma oficial da imigração, reconstruiu a vida e me ofereceu sua visão genuína e tocante do mundo enquanto me apresentava o país.

E assim, os desconhecidos foram me ajudando a passar de fronteira em fronteira.

Os laços que me unem a cada um deles se desfazem delicadamente com o tempo. Mas nunca serão esquecidos.

Esses amigos são anjos no caminho. Aparecem nas viagens. Ensinam, transformam e vão embora.

 

 

Valentina! Mais um anjo do caminho.

Na velha estação de trem de Varsóvia havia duas categorias de plataforma: as renovadas, com placas coloridas e instruções em inglês; e as antigas, onde as direções apareciam em polonês com letras apertadas em painéis preto e branco. As da primeira categoria estavam reservadas aos trens que iam para o Oeste, rumo  a cidades como Berlim — onde, já no desembarque, o viajante ocidental sentiria-se seguro como em casa. De acordo com a minha passagem, eu deveria me apresentar nas da segunda categoria.

Comparei  as instruções em polonês e ucraniano, no verso do bilhete, com as placas na estação. E saí fazendo meu caminho pelo movimento nervoso das escadas e corredores subterrâneos da Warszawa Centralna.

Mais um lance de degraus acima e… pronto! Meu ponto ficava numa longa plataforma cinzenta, de concreto, tomada por uma multidão zangada que se acotovelava carregando malas e sacolas de náilon, dessas de feira, cheias até quase transbordar.

Viagem de trem

Na plataforma, todos lutavam por um lugarzinho esbravejando, reclamando, conversando num idioma com o qual eu não tinha a mínima afinidade. Aquela era a área reservada aos trens de grande distância que partiam para o Leste e percorriam rotas ainda pouco estruturadas para o turismo. Eu era a única pessoa ali sem poder de comunicação, e viajando até a Ucrânia por lazer e curiosidade.

Acanhada, atrapalhando o movimento e tomando empurrões, fiz as contas: dois ou três fossos nos separavam lá daquelas plataformas novinhas, tão organizadas, tão modernamente europeias, ponto de partida para as seguras e descomplicadas Berlim, Viena, Paris… Minha sensação de pertencimento estava no Oeste, e mesmo assim eu escolhia o obscuro lado contrário, aquele para onde aventureiros normalmente não optavam por ir sozinhos.

A recusa em seguir

Sempre fui movida a medo — e ainda não descobri se isso é bom ou ruim. Quando reconheço o medo, curiosamente, eu não corro na direção oposta, mas ao encontro dele. E luto até que um de nós saia vitorioso e a inquietação acabe.

Às vezes eu ganho, muitas vezes quem ganha é o medo.

Daquela vez, escolhi fugir dele sem nem lutar.

Dei as costas para a plataforma e voltei todo o caminho, abrindo espaço entre estranhos e percorrendo novamente o corredores subterrâneos, escadas e saguão, até sair aflita pela pesada porta principal da Estação Central de Varsóvia. Ao erguer o rosto para puxar fôlego e ar puro, bati os olhos no maior arranha-céu da Polônia.

O Palácio de Cultura e Ciência de Varsóvia é um dos prédios que Stalin espalhou pelos países soviéticos para demonstrar a força da URSS

O Palácio da Cultura e da Ciência de Varsóvia (Pałacu Kultury i Nauki – PKiN), construído quando o país vivia sob a influência da União Soviética, inspira tanto deslumbre quanto ressentimento. A Polônia o recebeu como um  “presente” da URSS, assim como outros países do bloco comunista também receberiam seus arranha-céus stalinistas. Hoje, uma brincadeira popular entre os moradores de Varsóvia insinua que o mirante do PKiN tem a “melhor vista da cidade porque é o único lugar onde o edifício não pode ser visto.” A fascinação por histórias como essa era o que me impulsionava a viajar – especialmente pelo Leste, a despeito de todas as dificuldades que uma jornada pela região, naquela época, poderia envolver.

O conselho do pai

De um telefone público entre o Palácio e a estação, liguei para casa, no Brasil, e comuniquei a meu pai que desistiria de tudo. Estava com medo de viajar sozinha. E ele me apoiou! “Deixa pra lá então, e volta pra casa que assim é mais fácil”, disse.

— Acha que eu sou boba, pai? – bati o gancho do telefone e entrei de volta na estação.

Deu tempo de ouvir o apito soando enquanto eu subia novamente as escadas de acesso à plataforma do trem Varsóvia-Kiev. Tapei os ouvidos e assisti ao gigante de ferro avançando lenta e vigorosamente pelo fosso. Rangia feito coisa velha que era.

Engoli seco. O estômago embrulhou.

Agora, um zumbido tocava dentro da minha cabeça e meu corpo tremia. Era mesmo um trem da era soviética indo para a capital da Ucrânia. Por que mesmo eu queria insistir num país pouco habituado a turistas e que só falava línguas que eu não dominava?

A  multidão me engoliu.

Todos tentavam entrar no trem ao mesmo tempo e, uma vez lá dentro, reivindicavam qualquer lugar onde sentassem. Não havia ordem. Os passageiros se empurravam, gritavam e atiravam as sacolas nas prateleiras. Um homem de quepe e apito berrava comigo em russo – ou seria ucraniano? –  apontando impaciente para minha passagem e bolsa.

Eu não conseguia pensar direito. Tinha a mente turva. Não entendia os gritos, os gestos e nem os números impressos no bilhete e nas poltronas. Se houvesse um lugar para mim ali, já estaria tomado.

Então veio o som das portas dos vagões se fechando. Blam!

Uma a uma. Blam!

Logo seria a vez da porta do meu vagão e aí o trem partiria comigo lá dentro.

“Não quero!”. Corri para a porta e iniciei a descida pela escadinha de ferro. Aquela história de viajante solitária e corajosa fora apenas uma mentira que contei por muito tempo – e terminava agora.

A ajuda inesperada

Nunca cheguei a pisar no chão da plataforma. Em vez disso, uma força me sugou de volta para dentro do trem.

A porta se fechou. Blam! Ouvi o ferrolho. O trem iniciou seu deslize.

Arrastada em marcha à ré vagão adentro, entregue ao destino e sem chance de reação, fui socada numa grande cabine vazia com dois sofás-cama. Olha, até que nada mal…

Pude então ver o rosto da mulher de cabelos pretos longos, minha algoz. Ela me soltou e correu para fora da cabine. Bateu a porta e me trancou lá dentro!

Do lado de fora, meteu-se numa conversa apoquentada com o funcionário do trem. Deu um último grito (acho que foi mais para um tipo de ordem) e entrou na cabine.  Ajeitou-se com pressa e ansiedade, tomou fôlego e se apresentou.

“Sou Valentina. Você está segura agora”.

Proteção mágica e desconhecida

O doce inglês com sotaque estrangeiro de Valentina me acalmou naquele mesmo instante e pelas próximas 20 horas de viagem até Kiev. Sentávamos uma de frente para a outra, cada uma num sofá.

Durante o trajeto, Valentina dividiu comigo melancia, pão doce, iogurte e linguiça tirados de um farnel que parecia não ter fundo. Emprestou xale e travesseiro quando me deitei vencida pelo cansaço. Fez a tradutora quando passaram o bilheteiro, os guardas de fronteira e a moça do chá, que nos abastecia de bebida quente em copos de vidro com elegantes suportes de metal trabalhado. Notava-se que os suportes eram antigos. —  Soviet times! –, disseram Valentina e a moça do chá juntas quando percebi que a base de um deles ainda levava a marca de uma foice e um martelo.

Conversamos sobre família – ela me mostrou algumas fotos – e coragem de sair pelo mundo fazendo escolhas solitárias que dão medo. Ela me ensinou a como agir na Ucrânia e a como encarar as primeiras dificuldades de comunicação e cultura quando pisasse em Kiev.

De onde vinha essa ajuda?

Valentina foi uma ucraniana que notou minha aflição de longe, desde a chegada na estação. Compadecida, me ofereceu um lugar em sua cabine exclusiva e convenceu o guarda do trem de que esse era o melhor jeito de se tratar uma estrangeira assustada, perdida e com a poltrona tomada.

Nos despedimos para sempre pela janela de um táxi. Valentina deu três tapas no teto do carro, liberando o motorista para me levar em segurança ao conjunto de apartamentos-colméia onde estudantes estrangeiros – especialmente chineses – se hospedavam na cidade. Não trocamos contato.

Por um mês, consegui explorar a Ucrânia sozinha.

Como eu já disse, é encarando o medo que termino por vencê-lo e me torno a mais… valente!

Algo me diz que dessa vez, o sucesso da missão teve a misteriosa mão de uma amiga.

Valentina foi mais um anjo no meu caminho.

Medo vencido (ilustraçao de Lu Otto)