Uma vez que você começa o movimento, não há lugar para a preguiça.
É preciso fazer deslocamentos. E eles podem ser cansativos tanto para o corpo quanto para a mente.
Você sobe e desce de trens, ônibus, aviões… Se acomoda em um lugar, mas então logo precisa partir. Repete o processo de procurar hospedagem, compreender o trajeto, ler cardápios esquisitos, comunicar-se em outra língua, enfim reaprender como a banda toca a cada próximo destino…
Cansa lidar com imprevistos e com a bagagem a carregar.
Perder-se é divertido, mas também cansativo quando se está só – pois é preciso manter o estado de alerta constante.
Eu relutei em contar, mas lá vai: no meio de uma praça em Istambul tem um obelisco de – simplesmente! – 3500 anos e que um dia foi trazido do templo de Karnak, no Egito, para a Turquia na maior cara de pau! Esse obelisco viu corridas de bigas, execuções públicas, lutas de gladiadores, eventos com imperadores…Viu as tretas do Império Bizantino por uns 1000 anos e os pipocos do Império Otomano por uns 400.
Mas num dia de chuva em Istambul, eu passei reto por ele correndo com fome na direção de um McDonald´s. Como se aquele obelisco milenar fosse um poste da Copel! (Copel é a Companhia Paranaense de Luz, e eu sou filha de um engenheiro que ajudou a construir essa empresa)
Vergonha, né?
É que eu não aguentava mais!!! Istambul é tão valiosa em informações que acabei exausta mental e fisicamente. Só queria comer num lugar onde não fosse preciso usar o cérebro para escolher algo do cardápio.
Pronto, falei! E a imagem aqui é antiga porque no esgotamento eu não fiz a minha própria foto.
De tempos em tempos, alguma palavra ou expressão fica em evidência, já notou? É como se ela viesse dentro de uma espécie de nuvem que paira sobre nós, retendo o inconsciente coletivo e trazendo definições para o espírito do tempo. Recentemente, tenho me deparado com vários debates sobre o “pertencimento”. Essa palavra – que significa coexistir harmoniosamente com o mundo – foi fisgada de uma dessas nuvens, tenho certeza.
Seja como for, a fina essência do tal pertencimento me foi apresentada por um viajante.
Conheci Flávio num retiro de autoconhecimento. Ele chegou me falando de um livro. Era o autor. E também o personagem principal. O Mundo que Pertenço, de Flávio Santos, conta a trajetória de um rapaz que busca seu lugar no mundo e, no meio do caminho, dá de cara com uma pedra enorme.
O desejo de pertencer
O autor do livro em Myanmar
É dentro de um caminhão encostado à beira de uma estrada, na Bulgária, que a história começa. Flávio acorda na cabine. Ainda é madrugada e lá fora faz muito frio. Já se passaram quase dois anos desde aquele fatídico dia na Indonésia, quando ele perdeu tudo o que tinha.
Em seguida, descobrimos que o rapaz já vinha encarando duras verdades muito antes do incidente na viagem. Aos 11 anos, recomeçara a vida do zero junto com a mãe, deixando para trás uma sofrida existência que os dois não queriam mais engolir.
Acompanhamos nosso personagem crescendo e vencendo etapas. Ele encontra barreiras na forma de privilégios sociais e, por vezes, em crises de autoestima e de identidade. Derruba todas. Chega à faculdade. Mas continua achando que viajar para o exterior é um privilégio ao qual nunca terá acesso.
Falta a Flávio a sensação de pertencer ao mundo.
Então, vive uma experiência na qual é apresentado a outros países. Mas sem que precise sair de casa! É o estopim. Ouve o chamado, recolhe as economias e vai viajar de verdade.
Desamparo: a trapalhada que originou o livro
O autor fazendo sua refeição no caminhão de um novo amigo
Devoramos os primeiros capítulos à espera da trapalhada que deu origem ao livro. Mas o percurso até lá é tão encantador que, pelo menos eu, cheguei a esquecer que me joguei nessa leitura para me inteirar do caso de um bruto de um perrengue de viagem.
Finalmente, quando a encrenca principal toma seu lugar no enredo, inicia-se uma sequência de movimentos como se as pessoas e as situações com as quais Flávio se depara fossem peças de um jogo de tabuleiro. E o objetivo desse jogo é impedi-lo de voltar para casa ou de desistir do sonho de viajar. A dinâmica é ele dizendo “sim” para o que a vida lhe apresenta, enquanto a ajuda vem de todos os lados, material ou não, e de gente nunca vista antes.
Flávio vai sendo amparado pela gratidão e hospitalidade de instituições para as quais passa a trabalhar como voluntário, e pelo amor daqueles com quem vai convivendo.
Quando os recursos ficam mais escassos, uma refeição providencial significa mais um dia nessa viagem. E ela sempre aparece. Chega num prato cheio oferecido por um monge, uma família que abre espaço na mesa, um novo amigo, um desconhecido que compartilha o pouco que tem…
Esclarecimento e empatia
A família que acolhe o autor na Indonésia
Flávio se diverte, mas também leva tremendos choques culturais. E os aceita. São oportunidades para desenvolver a flexibilidade como ser humano. O ritual festivo em que assiste à repulsiva morte de um animal cuja carne consagrada vai alimentar famílias pobres é, ao mesmo tempo, triste e elucidativo: nosso herói renasce esclarecido, armado de empatia.
Apesar de conseguir se manter no jogo, lida com sentimentos desconfortáveis. Como a culpa por ter se deixado cair em desgraça; a consciência de que já teve inveja dos outros; e a percepção de que quanto mais pobre é um país, mais solidariedade e fartura os cidadãos lhe entregam.
Espere para tomar suas dores quando ele é alvo de grosserias numa pizzaria holandesa ou num mercado belga. Ou para acessar sua tristeza quando, acolhido num monastério, ele testemunha uma mãe miserável e arrasada colocar seu bebê nos braços de um monge e ir embora.
O poder do “sim”
O autor na imensidão da Capadócia
Ao longo da jornada, Flávio jamais recua. E não sabemos se ele faz isso conscientemente. Mas fica claro que a cada “sim” dito, o universo enigmaticamente se curva ao nosso herói e lhe entrega grandes coisas. Desde o chinelo avulso que aparece à beira da estrada e se ajusta ao pé direito, que precisava de um calçado; até o desfecho extraordinariamente amoroso de uma angustiante carona oferecida por um motorista suspeito.
Em determinado momento, as habilidades como engenheiro – sua profissão de canudo – lhe abrem as portas de um trabalho. E ele se desconcerta com a consideração e a delicadeza recebidas dos colegas nativos, e nos emociona. Flávio está inserido, pertencendo ao mundo. De uma forma como jamais havia pertencido até então.
Eventualmente, o leitor se confunde sobre onde está. É que essa história não é sobre destinos, mas sobre pessoas e a jornada. Mesmo assim, um mapa explicativo nas orelhas do livro dá conta de nos localizar.
A bondade triunfa
O autor Flávio Santos no Monte Batur, na Indonésia.
Finalmente, o plano original de viajar por um ano transforma-se em 24 meses de uma trajetória de superação, com participação intensa em projetos voluntários em Myanmar e Indonésia e um passaporte carimbado de acolhimento e solidariedade em 27 países. Além de um bocado de diversão.
Ao se entregar e dar chance às pessoas, vendo-as como fonte de bondade e segurança, e não de perigo, nosso viajante triunfa. No fim das contas, Flávio não explorou o mundo – como desejava fazer. Explorou a si mesmo. Viveu sim para si, mas também para os outros.
Acima de tudo, voltou da viagem para contar alguns “causos” sobre como reagir ao que a vida nos oferece, mesmo quando ela nos oferece o estranho, o desconhecido, o inesperado…
Enquanto escrevia o livro, tornou-se instrutor de meditação e técnicas de respiração. E montou um projeto para falar às pessoas sobre o poder do pertencimento e das atitudes altruístas. E pensar que tudo o que ele procurava desde criança era uma coexistência harmoniosa com o mundo…
Se você o encontrar por aí, vai notar uma frase em birmanês tatuada em seu braço. Ela significa “Dê, mesmo se você tiver muito pouco para dar.”