Valentina! Mais um anjo do caminho.

Na velha estação de trem de Varsóvia havia duas categorias de plataforma: as renovadas, com placas coloridas e instruções em inglês; e as antigas, onde as direções apareciam em polonês com letras apertadas em painéis preto e branco. As da primeira categoria estavam reservadas aos trens que iam para o Oeste, rumo  a cidades como Berlim — onde, já no desembarque, o viajante ocidental sentiria-se seguro como em casa. De acordo com a minha passagem, eu deveria me apresentar nas da segunda categoria.

Comparei  as instruções em polonês e ucraniano, no verso do bilhete, com as placas na estação. E saí fazendo meu caminho pelo movimento nervoso das escadas e corredores subterrâneos da Warszawa Centralna.

Mais um lance de degraus acima e… pronto! Meu ponto ficava numa longa plataforma cinzenta, de concreto, tomada por uma multidão zangada que se acotovelava carregando malas e sacolas de náilon, dessas de feira, cheias até quase transbordar.

Viagem de trem

Na plataforma, todos lutavam por um lugarzinho esbravejando, reclamando, conversando num idioma com o qual eu não tinha a mínima afinidade. Aquela era a área reservada aos trens de grande distância que partiam para o Leste e percorriam rotas ainda pouco estruturadas para o turismo. Eu era a única pessoa ali sem poder de comunicação, e viajando até a Ucrânia por lazer e curiosidade.

Acanhada, atrapalhando o movimento e tomando empurrões, fiz as contas: dois ou três fossos nos separavam lá daquelas plataformas novinhas, tão organizadas, tão modernamente europeias, ponto de partida para as seguras e descomplicadas Berlim, Viena, Paris… Minha sensação de pertencimento estava no Oeste, e mesmo assim eu escolhia o obscuro lado contrário, aquele para onde aventureiros normalmente não optavam por ir sozinhos.

A recusa em seguir

Sempre fui movida a medo — e ainda não descobri se isso é bom ou ruim. Quando reconheço o medo, curiosamente, eu não corro na direção oposta, mas ao encontro dele. E luto até que um de nós saia vitorioso e a inquietação acabe.

Às vezes eu ganho, muitas vezes quem ganha é o medo.

Daquela vez, escolhi fugir dele sem nem lutar.

Dei as costas para a plataforma e voltei todo o caminho, abrindo espaço entre estranhos e percorrendo novamente o corredores subterrâneos, escadas e saguão, até sair aflita pela pesada porta principal da Estação Central de Varsóvia. Ao erguer o rosto para puxar fôlego e ar puro, bati os olhos no maior arranha-céu da Polônia.

O Palácio de Cultura e Ciência de Varsóvia é um dos prédios que Stalin espalhou pelos países soviéticos para demonstrar a força da URSS

O Palácio da Cultura e da Ciência de Varsóvia (Pałacu Kultury i Nauki – PKiN), construído quando o país vivia sob a influência da União Soviética, inspira tanto deslumbre quanto ressentimento. A Polônia o recebeu como um  “presente” da URSS, assim como outros países do bloco comunista também receberiam seus arranha-céus stalinistas. Hoje, uma brincadeira popular entre os moradores de Varsóvia insinua que o mirante do PKiN tem a “melhor vista da cidade porque é o único lugar onde o edifício não pode ser visto.” A fascinação por histórias como essa era o que me impulsionava a viajar – especialmente pelo Leste, a despeito de todas as dificuldades que uma jornada pela região, naquela época, poderia envolver.

O conselho do pai

De um telefone público entre o Palácio e a estação, liguei para casa, no Brasil, e comuniquei a meu pai que desistiria de tudo. Estava com medo de viajar sozinha. E ele me apoiou! “Deixa pra lá então, e volta pra casa que assim é mais fácil”, disse.

— Acha que eu sou boba, pai? – bati o gancho do telefone e entrei de volta na estação.

Deu tempo de ouvir o apito soando enquanto eu subia novamente as escadas de acesso à plataforma do trem Varsóvia-Kiev. Tapei os ouvidos e assisti ao gigante de ferro avançando lenta e vigorosamente pelo fosso. Rangia feito coisa velha que era.

Engoli seco. O estômago embrulhou.

Agora, um zumbido tocava dentro da minha cabeça e meu corpo tremia. Era mesmo um trem da era soviética indo para a capital da Ucrânia. Por que mesmo eu queria insistir num país pouco habituado a turistas e que só falava línguas que eu não dominava?

A  multidão me engoliu.

Todos tentavam entrar no trem ao mesmo tempo e, uma vez lá dentro, reivindicavam qualquer lugar onde sentassem. Não havia ordem. Os passageiros se empurravam, gritavam e atiravam as sacolas nas prateleiras. Um homem de quepe e apito berrava comigo em russo – ou seria ucraniano? –  apontando impaciente para minha passagem e bolsa.

Eu não conseguia pensar direito. Tinha a mente turva. Não entendia os gritos, os gestos e nem os números impressos no bilhete e nas poltronas. Se houvesse um lugar para mim ali, já estaria tomado.

Então veio o som das portas dos vagões se fechando. Blam!

Uma a uma. Blam!

Logo seria a vez da porta do meu vagão e aí o trem partiria comigo lá dentro.

“Não quero!”. Corri para a porta e iniciei a descida pela escadinha de ferro. Aquela história de viajante solitária e corajosa fora apenas uma mentira que contei por muito tempo – e terminava agora.

A ajuda inesperada

Nunca cheguei a pisar no chão da plataforma. Em vez disso, uma força me sugou de volta para dentro do trem.

A porta se fechou. Blam! Ouvi o ferrolho. O trem iniciou seu deslize.

Arrastada em marcha à ré vagão adentro, entregue ao destino e sem chance de reação, fui socada numa grande cabine vazia com dois sofás-cama. Olha, até que nada mal…

Pude então ver o rosto da mulher de cabelos pretos longos, minha algoz. Ela me soltou e correu para fora da cabine. Bateu a porta e me trancou lá dentro!

Do lado de fora, meteu-se numa conversa apoquentada com o funcionário do trem. Deu um último grito (acho que foi mais para um tipo de ordem) e entrou na cabine.  Ajeitou-se com pressa e ansiedade, tomou fôlego e se apresentou.

“Sou Valentina. Você está segura agora”.

Proteção mágica e desconhecida

O doce inglês com sotaque estrangeiro de Valentina me acalmou naquele mesmo instante e pelas próximas 20 horas de viagem até Kiev. Sentávamos uma de frente para a outra, cada uma num sofá.

Durante o trajeto, Valentina dividiu comigo melancia, pão doce, iogurte e linguiça tirados de um farnel que parecia não ter fundo. Emprestou xale e travesseiro quando me deitei vencida pelo cansaço. Fez a tradutora quando passaram o bilheteiro, os guardas de fronteira e a moça do chá, que nos abastecia de bebida quente em copos de vidro com elegantes suportes de metal trabalhado. Notava-se que os suportes eram antigos. —  Soviet times! –, disseram Valentina e a moça do chá juntas quando percebi que a base de um deles ainda levava a marca de uma foice e um martelo.

Conversamos sobre família – ela me mostrou algumas fotos – e coragem de sair pelo mundo fazendo escolhas solitárias que dão medo. Ela me ensinou a como agir na Ucrânia e a como encarar as primeiras dificuldades de comunicação e cultura quando pisasse em Kiev.

De onde vinha essa ajuda?

Valentina foi uma ucraniana que notou minha aflição de longe, desde a chegada na estação. Compadecida, me ofereceu um lugar em sua cabine exclusiva e convenceu o guarda do trem de que esse era o melhor jeito de se tratar uma estrangeira assustada, perdida e com a poltrona tomada.

Nos despedimos para sempre pela janela de um táxi. Valentina deu três tapas no teto do carro, liberando o motorista para me levar em segurança ao conjunto de apartamentos-colméia onde estudantes estrangeiros – especialmente chineses – se hospedavam na cidade. Não trocamos contato.

Por um mês, consegui explorar a Ucrânia sozinha.

Como eu já disse, é encarando o medo que termino por vencê-lo e me torno a mais… valente!

Algo me diz que dessa vez, o sucesso da missão teve a misteriosa mão de uma amiga.

Valentina foi mais um anjo no meu caminho.

Medo vencido (ilustraçao de Lu Otto)

Viajante Independente: LIÇÃO Nº 2

Uma vez que você começa o movimento, não há lugar para a preguiça.

É preciso fazer deslocamentos. E eles podem ser cansativos tanto para o corpo quanto para a mente.

Você sobe e desce de trens, ônibus, aviões… Se acomoda em um lugar, mas então logo precisa partir. Repete o processo de procurar hospedagem, compreender o trajeto, ler cardápios esquisitos, comunicar-se em outra língua, enfim reaprender como a banda toca a cada próximo destino

Cansa lidar com imprevistos e com a bagagem a carregar.

 

Perder-se é divertido, mas também cansativo quando se está só – pois é preciso manter o estado de alerta constante.

Eu relutei em contar, mas lá vai: no meio de uma praça em Istambul tem um obelisco de – simplesmente! – 3500 anos e que um dia foi trazido do templo de Karnak, no Egito, para a Turquia na maior cara de pau! Esse obelisco viu corridas de bigas, execuções públicas, lutas de gladiadores, eventos com imperadores…Viu as tretas do Império Bizantino por uns 1000 anos e os pipocos do Império Otomano por uns 400.

Mas num dia de chuva em Istambul, eu passei reto por ele correndo com fome na direção de um McDonald´s. Como se aquele obelisco milenar fosse um poste da Copel! (Copel é a Companhia Paranaense de Luz, e eu sou filha de um engenheiro que ajudou a construir essa empresa)

Vergonha, né?


É que eu não aguentava mais!!!
 Istambul é tão valiosa em informações que acabei exausta mental e fisicamente. Só queria comer num lugar onde não fosse preciso usar o cérebro para escolher algo do cardápio.

Pronto, falei! E a imagem aqui é antiga porque no esgotamento eu não fiz a minha própria foto.

Viajante Independente: LIÇÃO Nº 1

Em abril de 1917, Lênin desembarcou de um trem na Estação Finlândia, em Petrogrado (hoje, São Petersburgo), na Rússia. Após um longo exílio, ele vinha liderar uma das mais dramáticas revoluções da história mundial.

Eu também cheguei na Rússia nessa mesma Estação Finlândia. Só que quase 100 anos depois, como uma viajante independente e sem pretensões – porém tendo cometido um erro básico que me deixara sem dinheiro e na condição de, digamos, analfabeta. Sem amigos à espera e sem um só rublo no bolso para negociar, eu também estava condições de me comunicar. Havia me esquecido que, ao atravessar a fronteira finlandesa e chegar na Rússia, o alfabeto era o cirílico – um sistema alfabético de escrita sobre o qual eu não tinha o mínimo conhecimento.

Eu estava em apuros.

Eu estava viajando sozinha.

Essa história é sobre como viagens solo (e suas burradas) podem nos fortalecer para os duelos diários, além de ensinar lições muito valiosas sobre nós mesmos

Quando você for viajar sozinho:

LIÇÃO 1. VÃO TENTAR TE CONVENCER A DESISTIR

Os outros farão de tudo para te convencer a não ir adiante. Uma vez que você faz um movimento – e esse movimento é ousado – você mostra que sempre há gente se arriscando a realizar coisas apesar das dificuldades.

E isso incomoda.

É que se juntos não fizermos nada, não precisaremos lidar com nossos possíveis insucessos, não é?

Bom, foi por amor que meu irmão sugeriu que eu voltasse e fizesse ‘um concurso público’ quando um dia comuniquei que iria para a Estônia e não para o aeroporto tomar o voo de volta pra casa.

Também por amor, amigas me enviavam mensagens enquanto eu viajava ressaltando a falta que minha presença fazia. Mas quer saber? Quando voltei, a maioria delas estava ocupada lidando com a própria vida.

Mas eu me cansei mesmo foi de encontrar quem, sem motivo aparente, desencoraja o outro a desbravar fronteiras.

Mas eu me cansei mesmo foi de encontrar quem, sem motivo aparente, desencoraja o outro a desbravar fronteiras.

Certo inverno, numa troca de trens para a Escandinávia, encontrei um brasileiro recém-formado em medicina e orgulhoso dos muitos carimbos em seu passaporte. Ele havia estado na Noruega num tempo escuro e frio! Então, no momento, ele era o meu herói!  E dele eu queria todos os conselhos de viajante que pudesse conseguir. Seu assunto principal era ele mesmo e suas façanhas ao norte. E seus conselhos se concentravam nas desgraças que poderiam me abater – ser deportada e sofrer com solidão, frio e escuridão… Era hora dele voltar para o Brasil, mas queria continuar on the road .

Ele me dizia “não vá, vai ser difícil”. Mas, gente… Por quê?

TAMBÉM VI ISSO NUM FILME

No filme Livre , baseado em uma história real, Reese Whiterspoon faz o papel de Cheryl Strayed, uma solitária viajante que busca a cura para um trauma pessoal peregrinando. Ela atravessa a Pacific Crest Trail, trilha de 4265 quilômetros que cruza os Estados Unidos desde o México até o Canadá. Cheryl faz amigos no caminho. Um deles é Greg. Em certo momento, Greg quase planta na mente de Cheryl a dúvida determinante: continuar ou desistir? É incrível como ele faz isso quase sem querer. E sutilmente.

AMIGO DA ONÇA OU INOCENTE?

Os mais observadores percebem: o personagem de Greg anda lidando com os próprios monstros e frustrações durante a aventura. E não é que em determinado ponto vem realmente a notícia de que ele desistiu? Pois Cheryl continuou.

O escritor Steven Pressfield – autor do livro que deu origem ao filme Lendas da Vida (com Matt Damon e Will Smith) – nos fala sobre um inimigo que nos impede de realizar aquilo que mais desejamos.

Esse inimigo é nossa própria Resistência.

Em seu livro A Guerra da Arte , ele disseca a Resistência mostrando diversas de suas faces.

E uma das faces da Resistência é a culpa que colocamos nos outros – enquanto o que nos prejudica é o peso que damos àquilo que os outros dizem.

“Quando vemos os outros começando a viver suas vidas autênticas, ficamos loucos se não estivermos vivendo a nossa própria vida real. Os indivíduos que se sentem realizados em suas próprias vidas quase nunca criticam o próximo. Quando falam, é para oferecer encorajamento.”
(Steven Pressfield, em A Guerra da Arte)