Na cidadezinha de Cognac, no sudoeste francês, o aroma da mais nobre das bebidas destiladas paira no ar. É verdade. Deu para perceber logo que saltei do trem na pequena estação ferroviária do lugar. De olfato aturdido logo de início, adentrei Cognac com uma missão: apurar para um guia de viagens transformadoras qual das destilarias de conhaque locais ofereceria o melhor tour com degustação.

E esse era o prenúncio de uma pequena confusão. 

Eu havia saltado do penúltimo trem a passar por ali antes de o país inteiro ter sua atividade nos trilhos interrompida por tempo indeterminado. Greves de trem são comuns na França. Dentro de poucas horas uma parada nacional deveria eclodir. E a recomendação do meu editor era bem clara:

“Desça na estação, faça todos os tours pelas destilarias de conhaque. Faça fotos. E se mande de lá a tempo de pegar o último trem e chegar a algum lugar onde você possa se instalar antes do caos tomar conta da França.”

Ele se referia ao caos do transporte. Mas o caos iminente era bem outro.

“DESCUBRA QUAL CASA DE CONHAQUE TEM O MELHOR TOUR.

A ordem vinha acrescida de um pedido ousado:

“Faça TODOS os tours”.

Quando se entra em Cognac, percebe-se que os muros da cidade são enegrecidos. Culpa de um fungo que se nutre dos vapores liberados pelos depósitos de conhaque, a bebida que um dia o escritor Victor Hugo chamou de “elixir dos deuses”. O tal elixir – de cujo vapor minhas narinas também já vinham se nutrindo ao primeiro contato com a cidade – foi descoberto no século 16. E sua técnica de produção foi sendo refinada ao longo do tempo.

Hoje, é assim: o vinho de seis cépages (variedade de uvas) rigorosamente regulamentadas é duas vezes destilado e levado a envelhecer por um período de 5 a 40 anos em barris de carvalho. Só então vira conhaque.  A madeira nobre é fundamental na maturação e refinação da bebida.

Todas as destilarias promovem visitas guiadas seguidas de degustação – os tais tours de conhaque que eu deveria apurar.

MAAAAASSSS…

Há muitos anos, houve um atentado envolvendo uma bomba dentro de um armário para bagagens numa uma estação de Paris. Logo, a França aboliu esse tipo de depósitos de mala. E eu, que estava em Cognac só para uma breve visita de um dia, não tinha onde guardar meus pertences.

Só me restou pedir ao garçom de um bar em frente à estação que me deixasse encostar minha mochila num cantinho por algumas horas. Com certa má vontade, ele permitiu.

Rumo ao brind…ops, trabalho!

Segui, sob olhares curiosos dos clientes do bar, para a destilaria Martell. 

Em seu tour, a mais antiga maison de conhaque do mundo, nos apresenta os principais processos de produção e abre a adega do mestre com mais de mil amostras da bebida. É a única a permitir uma espiada na empolgante linha de engarrafamento automatizada, onde os vidros são preenchidos, fechados e embalados com precisão espantosa. Antes da degustação, há um passeio por um gabarre, o tradicional barco usado antigamente para transportar barris de conhaque pelo rio Charentes.

Anotei tudinho e, de câmera em punho, fui impedida de bater fotos das instalações. Mas nem liguei porque no final da visita a degustação deixou tudo muito mais simpático e agradável.

No segundo copo esqueci a cara feia do garçom do bar. No terceiro perdoei pra sempre o tratamento ríspido da mademoiselle que baixara meu punho na hora da foto.

Definitivamente, essa tinha grandes chances de ser a CASA DE TOUR COM O MELHOR CONHAQUE.

Porta afora, segui rumo à Otard, instalada dentro de um castelo de 1494 – o Château de Cognac, onde nasceu François I, que foi rei da França durante parte do século 16.

Lá, uma turma metida em fantasias medievais me apresentou o lugar e, finalmente, me levou aos aposentos mais profundos do castelo, onde o conhaque é produzido e armazenado.

Estive rodeada por curiosidades como a desejada edição especial de 1972, limitada a 2,5 mil garrafas, e a preciosidade de cor rubi e ouro Baron Otard Extra de 1795!

Ali na Otard, as paredes estão completamente tomadas pelo tal fungo que se alimenta do vapor do elixir dos deuses. Por ano, esses minúsculos seres consomem o equivalente a 23 mil garrafas de conhaque. CERTAMENTE, isso é um tour com fungos bêbados!

Estava bem perto de encontrar o MELHOR TOUR COM CASA DE CONHAQUE.

Imaginei o editor orgulhoso de mim…


Degustei um copo pra mim e um copo pra ele.
E depois um copo para o santo que estava me ajudando na  missão.

Saí pela porta dos fundos, de onde eles despejam os visitantes depois de degustados.

Segui saltitante para a casa Rémy Martin, certa de que ia encontrar o… MELHOR CONHAQUE COM CASA DE TOUR!

Edições exclusivas e raridades que passam dos milhares de euros – mesmo que separadas dos mortais comuns por vitrines e redomas – são o trunfo do tour na Rémy Martin. A visita a essa casa que produz conhaque desde 1724 passa por corredores que expõem garrafas cheias do delicioso líquido variando do dourado vibrante até o âmbar luminoso e o mogno intenso.

Ao longo do passeio fomos seduzidos por palavras como sedoso, aveludado, acetinado – que se referem à textura de edições raríssimas, como a Centaure de Diamant, engarrafada num recipiente que imita uma pedra preciosa.

Obviamente, não foi dessa leva de raridades que provamos – eu e um animadíssimo grupo de americanos – no final do tour, quando já babávamos por um gole da tão bem afamada bebida.

Sem problemas. Entre um gole e outro brindamos à missão, que, perto do fim, me permitira encontrar na Rémy Martin a tão esperada… CASA DE MELHOR CONHAQUE COM TOUR!

Ufa! Dei um abração de agradecimento no monsieur que nos guiou e me empurrei com força sobre a pesada porta de saída, que, ops, não era tão pesada assim.

No jardim da Rémy dei uma olhada no mapa e dali tracei meu caminho até a Henessy , enquanto refletia sobre a necessidade de comprar tênis menos pesados para viagens assim.

Só em Cognac é que percebi que meu par de sapatos de viagem realmente parecia feito de chumbo.

Ainda deu tempo de chegar à porta da próxima destilaria, casa, maison de conhaque! É que fui trotando pelas ruas. Para chegar rápido. Precisei jogar os braços pra cima a fim de reivindicar minha vaga no último tour da tarde. “Permettez-moi de participer à cette visiteeeee”, gritei com meu francês bom.

Ninguém se opôs.

A Henessy tem o que parece ser o tour mais elegante de todas as casas. De gabarre (barco) e cobertos de mimos – como a degustação com canapés-evita-pileque – seguimos para o lugar onde os mais desejados e envelhecidos conhaques da marca são mantidos.

O tour que eles apelidam de “viagem ao paraíso” nos leva ao um espaço povoado por garrafas com jeito de obra de arte e de cores flutuando entre o mel e o âmbar avermelhado.

Inteiramente tomada por Cognac – guardando aquela simpática cidade aqui ó, no lado esquerdo do peito – anotei que a missão chegara ao fim. Aquele era…O MELHOR CONHAQUE COM TOUR DE CASA!

Pulei para fora do barco da Hennessy – dando Au Revoir à tripulação, que não sei bem se ria comigo ou de mim.

ADEUS

Atravessei as ruas de Cognaca apressada calçando os tênis de chumbo.

Sem fôlego, invadi o bar onde encostara e mochila. Precisei abrir os braços no ar para retribuir tamanha gentileza daquela gente boa, o que fiz bradando “Mon sac à dos, s´il vous plâit”. (significa “minha mochila, por favor, pessoal!”)

O gerente continuava com a mesma cara de poucos amigos de quando nos conhecemos naquele início de dia.  E permanecia enxugando um copo com pano de prato (?!). Deu uma queixada no ar na direção do trem, que despontava no horizonte se aproximando da estação.

Eu precisava organizar minhas ideias:

1) catar a mochila no canto;
2) jogá-la nas costas;
3) dar tchau para o garçom simpático;
4) vencer 50 metros, 2 lances de escadas e1 corredor subterrâneo;
5) acertar a plataforma;
6) acertar a seção da plataforma no qual o vagão da segunda classe estacionaria.

Tudo isso num cenário que girava.

Eu consegui.

Estatelei-me no banco do trem e caí no sono.

Fui acordada tempos depois, não me lembro onde, pelo homem do chapéu – aquele que passa recolhendo os bilhetes e cutuca nosso ombro quando estamos dormindo.

Sonolenta, me ajeitei para alcançar meu passe de trem e o que encontrei preso ao meu punho? A câmera fotográfica. E uma única foto:

 

Pois é. Esqueci de fazer as fotos.

 

Como NÃO visitar Cognac, na França

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