Uma ciclovia encantada na Europa báltica

Quando minha amiga Jurga me entregou o mapa da Lituânia, eu me propus a progredir aos poucos fazendo uma day-trip de bicicleta todos os dias — sempre voltando ao mesmo ponto no fim da tarde. Mas algo de fantástico acontecia a cada vez que eu deixava o limite urbano de Klaipeda e adentrava a ciclovia que cortava o país. É que certas histórias que vivi naquele caminho não caberiam no tempo e na distância que eu percorria.

 

                                 A ciclovia, a floresta, eu e a linha de trem atravessando os Bálticos

A Lituânia foi o último pedaço da Europa a se converter ao cristianismo. Dizem que rituais pagãos seguiram acontecendo no país até o século 20. Dizem… Porque às primeiras pedaladas eu já me via empurrada para dentro de um universo à parte, um mundo de coexistência harmoniosa entre a presença humana e os elementos da natureza — algo como um vínculo espiritual entre os dois.

Ao longo da via, cruzes e símbolos folclóricos esculpidos em madeira iam aparecendo, revelando uma forte presença mística tanto pagã quanto cristã. E eu seguia pedalando.

Jodkrante
                                            Esculturas de madeira que eu encontrava pelo caminho

Nos bosques de pinus acarpetados por líquen, cogumelos eram colhidos por gente silenciosa vinda–sei–lá–de–onde carregando cestinhas. Entre uma curva e outra, o chão da floresta às vezes virava areia. A bicicleta quase escorregava. Surgia, então, uma falésia, uma praia deserta, alguém sozinho colhendo âmbar… E o mar prateado

No trajeto, era comum passado virar presente .

Uma vez meu pneu topou num pedaço de concreto. Era ele, o gigante MEMEL NORD, que vinha se desenterrando de uma duna entre o bosque e a beira do mar, espalhando areia e galhos num moroso e mórbido movimento.

— Então, ele existia mesmo…Até então, eu achava que era boato.

Memel Nord

Memel Nord é um bunker, um bruto de um abrigo militar subterrâneo, blindado e fortificado, escondido na areia entre a praia e a floresta desde a 2ª Guerra Mundial. Foi descoberto recentemente.  Atrás de uma porta de aço, descobri que seus corredores percorriam o tempo guardando um pesado arsenal tanto alemão quanto soviético, uniformes militares, capacetes arruinados por buracos de bala, louças com a marca da S.S. [a organização paramilitar de elite nazista]... 



Quando cheguei ao telhado, me sentei sobre a artilharia antiaérea e acompanhei, ali sozinha, ao mais insólito pôr do sol da minha vida. Do topo do bunker, uma estranha sensação de embriaguez e dor de cabeça me dominavam. Tomei um gole vigoroso da água que levava no bornal, deslizei pela laje, montei na bicicleta e pedalei firme, retomando a viagem.

Pelas colinas dessa senda encantada é que fui conhecendo o que significa a plena presença – o tal  do“agora” de que tanto se fala por aí.

Um dia pedalei com mais empenho e acabei entrando na Curlândia — uma faixa de areia que avança 100 km pelo mar báltico dando num território russo chamado Kaliningrado.

Formada há mais de cinco mil anos, a Curlândia confundiu antigos cavaleiros e mercadores que pensavam ter encontrado ali um atalho entre os reinos de outro tempo. É que o  sopro forte dos ventos da região fizeram dunas gigantescas apagarem assentamentos humanos. Hoje os grandes montes de areia estão domados por os pinheiros plantados por toda a extensão da Curlândia. Mas não totalmente. Aqui o vento uiva e pode facilmente retorcer o pneu da bicicleta, assim como fez os troncos e galhos das florestas dançantes que beiram a ciclovia. 

A ciclovia na Curlândia indo até Kaliningrado (foto de Marija L @marliu)

Aliás, férias aqui na península de Curlândia, até 1990, foi privilégio reservado apenas aos amigos do regime soviético. (O que não foi, diga-se de passagem, o caso da família da Jurga, a amiga que me forneceu o mapa para essa terra excêntrica.)

Nida
Nida: vilarejo na península da Curlândia

Certa vez, ainda na península, quase atropelei um grupo de pessoas que atravessava meu caminho carregando flores e tochas acesas. Após pedir desculpas, decidi segui-las discretamente. Foram até um vilarejo às margens de um pântano em brumas e embarcaram em canoas. Lá no meio do pântano, atearam fogo em grandes figuras mitológicas de madeira erguidas sobre a água. Ali, de forasteira, notei que a ordem geral era deixar queimar  o que já não servia mais. A tarde caía e aquele era um ritual celebrando a partida do verão e a chegada do outono.

Bem mais tarde ainda naquele dia  —  quando retornei ao meu ponto diário de partida — , Jurga e seu marido Martynas me convidaram para jantar o peixe da lagoa que se forma entre o continente e a  península Curlândia. Esse peixe é capturado apenas durante o alto inverno, quando sobe até a superfície congelada. É uma iguaria especialmente oferecida a amigos verdadeiros ou a quem transpõe uma jornada e volta transformado. Como aconteceu comigo na encantada ciclovia Eurovelo 10.

Ilustração de Lu Otto sobre eu e a ciclovia mágica na Europa Báltica
IMPORTANTE

ONDE ME HOSPEDEI

Jurga e Martyna são donos do albergue (hostel) e apartamentos para alugar onde fiquei na Lituânia, na cidade de Klaipeda. São meus velhos amigos. Recomendo a passagem por lá e os passeios com eles pelo país.

ONDE FICA ESSA TAL CICLOVIA

A senda mágica que percorri diariamente, sempre voltando a Klaipeda, existe  e faz parte da ciclovia internacional Eurovelo 10.

Clicando aqui você pode ouvir essa história
em formato de PODCAST também. 

 

Valentina! Mais um anjo do caminho.

Na velha estação de trem de Varsóvia havia duas categorias de plataforma: as renovadas, com placas coloridas e instruções em inglês; e as antigas, onde as direções apareciam em polonês com letras apertadas em painéis preto e branco. As da primeira categoria estavam reservadas aos trens que iam para o Oeste, rumo  a cidades como Berlim — onde, já no desembarque, o viajante ocidental sentiria-se seguro como em casa. De acordo com a minha passagem, eu deveria me apresentar nas da segunda categoria.

Comparei  as instruções em polonês e ucraniano, no verso do bilhete, com as placas na estação. E saí fazendo meu caminho pelo movimento nervoso das escadas e corredores subterrâneos da Warszawa Centralna.

Mais um lance de degraus acima e… pronto! Meu ponto ficava numa longa plataforma cinzenta, de concreto, tomada por uma multidão zangada que se acotovelava carregando malas e sacolas de náilon, dessas de feira, cheias até quase transbordar.

Viagem de trem

Na plataforma, todos lutavam por um lugarzinho esbravejando, reclamando, conversando num idioma com o qual eu não tinha a mínima afinidade. Aquela era a área reservada aos trens de grande distância que partiam para o Leste e percorriam rotas ainda pouco estruturadas para o turismo. Eu era a única pessoa ali sem poder de comunicação, e viajando até a Ucrânia por lazer e curiosidade.

Acanhada, atrapalhando o movimento e tomando empurrões, fiz as contas: dois ou três fossos nos separavam lá daquelas plataformas novinhas, tão organizadas, tão modernamente europeias, ponto de partida para as seguras e descomplicadas Berlim, Viena, Paris… Minha sensação de pertencimento estava no Oeste, e mesmo assim eu escolhia o obscuro lado contrário, aquele para onde aventureiros normalmente não optavam por ir sozinhos.

A recusa em seguir

Sempre fui movida a medo — e ainda não descobri se isso é bom ou ruim. Quando reconheço o medo, curiosamente, eu não corro na direção oposta, mas ao encontro dele. E luto até que um de nós saia vitorioso e a inquietação acabe.

Às vezes eu ganho, muitas vezes quem ganha é o medo.

Daquela vez, escolhi fugir dele sem nem lutar.

Dei as costas para a plataforma e voltei todo o caminho, abrindo espaço entre estranhos e percorrendo novamente o corredores subterrâneos, escadas e saguão, até sair aflita pela pesada porta principal da Estação Central de Varsóvia. Ao erguer o rosto para puxar fôlego e ar puro, bati os olhos no maior arranha-céu da Polônia.

O Palácio de Cultura e Ciência de Varsóvia é um dos prédios que Stalin espalhou pelos países soviéticos para demonstrar a força da URSS

O Palácio da Cultura e da Ciência de Varsóvia (Pałacu Kultury i Nauki – PKiN), construído quando o país vivia sob a influência da União Soviética, inspira tanto deslumbre quanto ressentimento. A Polônia o recebeu como um  “presente” da URSS, assim como outros países do bloco comunista também receberiam seus arranha-céus stalinistas. Hoje, uma brincadeira popular entre os moradores de Varsóvia insinua que o mirante do PKiN tem a “melhor vista da cidade porque é o único lugar onde o edifício não pode ser visto.” A fascinação por histórias como essa era o que me impulsionava a viajar – especialmente pelo Leste, a despeito de todas as dificuldades que uma jornada pela região, naquela época, poderia envolver.

O conselho do pai

De um telefone público entre o Palácio e a estação, liguei para casa, no Brasil, e comuniquei a meu pai que desistiria de tudo. Estava com medo de viajar sozinha. E ele me apoiou! “Deixa pra lá então, e volta pra casa que assim é mais fácil”, disse.

— Acha que eu sou boba, pai? – bati o gancho do telefone e entrei de volta na estação.

Deu tempo de ouvir o apito soando enquanto eu subia novamente as escadas de acesso à plataforma do trem Varsóvia-Kiev. Tapei os ouvidos e assisti ao gigante de ferro avançando lenta e vigorosamente pelo fosso. Rangia feito coisa velha que era.

Engoli seco. O estômago embrulhou.

Agora, um zumbido tocava dentro da minha cabeça e meu corpo tremia. Era mesmo um trem da era soviética indo para a capital da Ucrânia. Por que mesmo eu queria insistir num país pouco habituado a turistas e que só falava línguas que eu não dominava?

A  multidão me engoliu.

Todos tentavam entrar no trem ao mesmo tempo e, uma vez lá dentro, reivindicavam qualquer lugar onde sentassem. Não havia ordem. Os passageiros se empurravam, gritavam e atiravam as sacolas nas prateleiras. Um homem de quepe e apito berrava comigo em russo – ou seria ucraniano? –  apontando impaciente para minha passagem e bolsa.

Eu não conseguia pensar direito. Tinha a mente turva. Não entendia os gritos, os gestos e nem os números impressos no bilhete e nas poltronas. Se houvesse um lugar para mim ali, já estaria tomado.

Então veio o som das portas dos vagões se fechando. Blam!

Uma a uma. Blam!

Logo seria a vez da porta do meu vagão e aí o trem partiria comigo lá dentro.

“Não quero!”. Corri para a porta e iniciei a descida pela escadinha de ferro. Aquela história de viajante solitária e corajosa fora apenas uma mentira que contei por muito tempo – e terminava agora.

A ajuda inesperada

Nunca cheguei a pisar no chão da plataforma. Em vez disso, uma força me sugou de volta para dentro do trem.

A porta se fechou. Blam! Ouvi o ferrolho. O trem iniciou seu deslize.

Arrastada em marcha à ré vagão adentro, entregue ao destino e sem chance de reação, fui socada numa grande cabine vazia com dois sofás-cama. Olha, até que nada mal…

Pude então ver o rosto da mulher de cabelos pretos longos, minha algoz. Ela me soltou e correu para fora da cabine. Bateu a porta e me trancou lá dentro!

Do lado de fora, meteu-se numa conversa apoquentada com o funcionário do trem. Deu um último grito (acho que foi mais para um tipo de ordem) e entrou na cabine.  Ajeitou-se com pressa e ansiedade, tomou fôlego e se apresentou.

“Sou Valentina. Você está segura agora”.

Proteção mágica e desconhecida

O doce inglês com sotaque estrangeiro de Valentina me acalmou naquele mesmo instante e pelas próximas 20 horas de viagem até Kiev. Sentávamos uma de frente para a outra, cada uma num sofá.

Durante o trajeto, Valentina dividiu comigo melancia, pão doce, iogurte e linguiça tirados de um farnel que parecia não ter fundo. Emprestou xale e travesseiro quando me deitei vencida pelo cansaço. Fez a tradutora quando passaram o bilheteiro, os guardas de fronteira e a moça do chá, que nos abastecia de bebida quente em copos de vidro com elegantes suportes de metal trabalhado. Notava-se que os suportes eram antigos. —  Soviet times! –, disseram Valentina e a moça do chá juntas quando percebi que a base de um deles ainda levava a marca de uma foice e um martelo.

Conversamos sobre família – ela me mostrou algumas fotos – e coragem de sair pelo mundo fazendo escolhas solitárias que dão medo. Ela me ensinou a como agir na Ucrânia e a como encarar as primeiras dificuldades de comunicação e cultura quando pisasse em Kiev.

De onde vinha essa ajuda?

Valentina foi uma ucraniana que notou minha aflição de longe, desde a chegada na estação. Compadecida, me ofereceu um lugar em sua cabine exclusiva e convenceu o guarda do trem de que esse era o melhor jeito de se tratar uma estrangeira assustada, perdida e com a poltrona tomada.

Nos despedimos para sempre pela janela de um táxi. Valentina deu três tapas no teto do carro, liberando o motorista para me levar em segurança ao conjunto de apartamentos-colméia onde estudantes estrangeiros – especialmente chineses – se hospedavam na cidade. Não trocamos contato.

Por um mês, consegui explorar a Ucrânia sozinha.

Como eu já disse, é encarando o medo que termino por vencê-lo e me torno a mais… valente!

Algo me diz que dessa vez, o sucesso da missão teve a misteriosa mão de uma amiga.

Valentina foi mais um anjo no meu caminho.

Medo vencido (ilustraçao de Lu Otto)

Viajante Independente: LIÇÃO Nº 2

Uma vez que você começa o movimento, não há lugar para a preguiça.

É preciso fazer deslocamentos. E eles podem ser cansativos tanto para o corpo quanto para a mente.

Você sobe e desce de trens, ônibus, aviões… Se acomoda em um lugar, mas então logo precisa partir. Repete o processo de procurar hospedagem, compreender o trajeto, ler cardápios esquisitos, comunicar-se em outra língua, enfim reaprender como a banda toca a cada próximo destino

Cansa lidar com imprevistos e com a bagagem a carregar.

 

Perder-se é divertido, mas também cansativo quando se está só – pois é preciso manter o estado de alerta constante.

Eu relutei em contar, mas lá vai: no meio de uma praça em Istambul tem um obelisco de – simplesmente! – 3500 anos e que um dia foi trazido do templo de Karnak, no Egito, para a Turquia na maior cara de pau! Esse obelisco viu corridas de bigas, execuções públicas, lutas de gladiadores, eventos com imperadores…Viu as tretas do Império Bizantino por uns 1000 anos e os pipocos do Império Otomano por uns 400.

Mas num dia de chuva em Istambul, eu passei reto por ele correndo com fome na direção de um McDonald´s. Como se aquele obelisco milenar fosse um poste da Copel! (Copel é a Companhia Paranaense de Luz, e eu sou filha de um engenheiro que ajudou a construir essa empresa)

Vergonha, né?


É que eu não aguentava mais!!!
 Istambul é tão valiosa em informações que acabei exausta mental e fisicamente. Só queria comer num lugar onde não fosse preciso usar o cérebro para escolher algo do cardápio.

Pronto, falei! E a imagem aqui é antiga porque no esgotamento eu não fiz a minha própria foto.

Tempelhof, Berlim: a redenção do aeroporto nazi

Quando Adolf Hitler chegou ao poder em 1933, ele quis construir uma grande porta de entrada  para o território do Terceiro Reich. Então, ele mirou Tempelhof, considerado na época o maior aeroporto da Europa. E ali, naquele terreno pediu ao arquiteto nazista Ernst Sagebiel que operasse uma transformação. 

Sagebiel obedeceu e construiu um colosso.

O campo de Tempelhof havia pertencido à Ordem dos Cavaleiros Templários na Idade Média (daí o nome) e sido o berço da famosa companhia de aviação alemã Lufthansa. 

O gigantesco terminal semicircular de Tempelhof foi inaugurado em 1939, remetendo às asas da reverenciada águia-símbolo da Alemanha nazista. Era um aeroporto descomunal, que combinava com a megalomania de Hitler e acolhia os aviões em área coberta.

Mas Tempelhof tinha ainda mais espaço. Então a Gestapo (a polícia secreta do estado nazista) achou conveniente instalar ali uma prisão. Na Columbia-Haus jornalistas, políticos, judeus e outros “inimigos” do regime nazista seriam encarcerados — enquanto voos comerciais iam e vinham, sem problemas nem interrupções.

Não é difícil encontrar registros de Adolf Hitler discursando diante de milhares de pessoas sob bandeiras nazistas. Pois alguns desses massivos eventos foram realizados na ampla áreaTempelhof.

Detalhe no aeroporto Tempelhof. Foto de Martin Lostak_unsplash

 

De infame aeroporto nazi a ponte de salvação

O que ninguém imaginava era que, com o fim da Segunda Guerra Mundial e com o desmoronamento dos planos do Terceiro Reich, esse controverso local pudesse salvar a vida dos berlinenses. Mas foi o que aconteceu.

Com a rendição nazista em 1945, a derrotada Alemanha foi dividida. Franceses, britânicos e americanos ocuparam a metade ocidental do país, enquanto os soviéticos ocuparam a metade oriental. Berlim foi um caso único: foi repartida por dentro, com cada país cuidando de um setor na cidade. Mas como estava na metade oriental da Alemanha, terminou completamente cercada pelos soviéticos. Berlim, então, se tornou uma ilha capitalista dentro de um território comunista.

Ninguém entra em Berlim Ocidental por terra

Três anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, as forças soviéticas bloquearam os acessos à Berlim controlada pelos ocidentais. E isso impediu o fornecimento de alimentos, medicamentos e tudo o mais que era importante para vida de dois milhões de pessoas que moravam lá dentro. 

Estava interrompido o fornecimento apenas via terrestre, diga-se. Afinal, se o aeroporto de Tempelhof estava em Berlim Ocidental, o acesso pelo ar ainda existia

E foi assim que, diariamente, duas toneladas de mantimentos passaram a chegar pelo ar –  mesmo com pilotos tendo que sobrevoar o inimigo – mantendo vivos os moradores da Berlim cercada. 

A tensa ponte aérea durou 15 meses e tornou-se uma das mais célebres proezas da história da aviação mundial.

 

Depois de milhares voos, o bloqueio terminou em maio de 1949

Pista de bike no século 21

Voos civis seguiram descendo no Tempelhof ligando Berlim ao mundo ocidental pelos anos seguintes, durante a Guerra Fria. Em 1989, veio a unificação alemã com a queda do Muro de Berlim, que separava os dois lados da cidade, mas o aeroporto continuou funcionando. Até que os voos maiores foram  gradualmente sendo desviados a outros aeroportos mais modernos da cidade.

O lugar que salvou Berlim do isolamento ainda chegou a ser pouso de companhias aéreas low cost até há pouco tempo. Então, um dia, deixou de existir como aeroporto.

Em 30 de outubro de 2008, o último voo regular decolou de Tempelhof às 22h. À meia-noite as luzes do pátio e das pistas de Tempelhof foram desligadas para sempre.

Morria o emblemático aeroporto que salvou da fome Berlim Ocidental. Nascia em 2010, no mesmo lugar, uma das maiores e mais queridas áreas de lazer da cidade.

Moradores do bairro vizinho de Schillerkiez têm em Tempelhof uma horta comunitária e berlinenses em geral fazem piqueniques e churrascos, pedalam, deslizam pelas pistas com skates e pranchas de windsurf com rodas, soltam pipas e jogam bola.

Eu, de bike, flanando pela pista de pouso do aeroporto Tempelhof. Foto de Rafael Carvalho do blog Esse Mundo é Nosso.
Como chegar 
Cheguei lá de bicicleta seguindo o mapa da cidade.
Mas dá para ir de metrô. É só parar em uma dessas estações: Tempelhof, Paradestr ou Platz der Luftbrücke.

*foto de abertura: Lars-schneider_uns

Shanti Gaia Serra Dona Francisca (SC)

A mil metros de altitude, no alto da Serra Dona Francisca – a cerca de 100 km de Curitiba (PR) ou 40 km de Joinville (SC) – uma casa acolhedora se ergue rodeada de gramados verdes, hortas e paredões de rocha cobertos de vegetação.

Lá dá para caminhar, meditar, fazer cursos ou simplesmente nada.

Terra de Paz é o significado do termo em sânscrito que batiza o lugar: Shanti Gaia.

Terapias holísticas, alimentação vegana (sem procedência animal) e tranquilidade formam o pacote que a psicóloga transpessoal e terapeuta ayurvédica Malú Krelling e seu marido, Roberto Krelling, oferecem a quem busca se revigorar e se autoconhecer.

Nadismo

Lá é possível passar um dia ou um final de semana dedicado à meditação, à prática de yoga, caminhadas… Ou nada disso! Os proprietários chamam essa última opção de nadismo. 🙂

Se o hóspede quiser simplesmente contemplar das janelas panorâmicas o cenário mergulhado em quietude absoluta – sem TV, sem alimentos industrializados e com roupas simples e confortáveis – e silenciar a mente, as expectativas, os medos e as frustrações, isso é possível.

A confraternização também é bem-vinda na aconchegante sala panorâmica com lareira, sofás e cadeiras que abraçam.

“As pessoas já têm a paz dentro delas, só precisam se dar o tempo para acessá-la”, diz Malú, que comanda a cozinha, enquanto o marido cuida da horta e abre trilhas.

Oficinas

Shanti Gaia também promove oficinas de desenvolvimento pessoal, cursos de reiki e de culinária vegana, retiros de meditação e  programas de desintoxicação. Mas nada disso envolve sacrifício ou sofrimento: a comida servida por Malu é tão reconfortante e deliciosa que você nem vai se lembrar do que come em casa; o conforto dos quartos e das instalações não conta com nenhuma ostentação e, mesmo assim, pode ser classificado como luxo – o amor e o respeito nos detalhes e os acabamentos de alta qualidade transformam a experiência.

Por fim, só o caminho até Shanti Gaia – por estradas cercadas de araucárias –  já vale a viagem. E se eu não conhecesse Malu, diria que a sensação de paraíso em Shanti Gaia talvez venha do fato desse pedaço de terra, no alto da montanha, estar mais perto do céu.

ESTRUTURA

Quartos privativos e compartilhados, trilhas, bosques, salas de yoga e massagem, horta e árvores frutíferas. E culinária vegana.

CONTATO
Shanti Gaia

COMO CHEGAR

Subindo a Rodovia SC-418 vindo de Joinville em direção a Campo Alegre, entre à esquerda no KM 38,5 logo após o Posto da Polícia Rodoviária, placa Rio dos Bugres.

Seguindo por mais 3,5 km você encontrará o portão principal de Shanti Gaia. Adentrando por mais 800 metros, chega-se à pousasa Shanti Gaia

“Que Caminho Você vai seguir? Sabes o que te move e aonde queres chegar quando o final de tua vida terrena chegar? Praticas o Autoconhecimento? Vais dedicar o feriado para ocupar o tempo com o quê? Quando olhas para o teu passado,vestá valendo a pena essa história que estás escrevendo a cada dia de sua vida?Se não houver perguntas é porque não há mais curiosidade e vontade de conhecer além do que a maioria da humanidade conhece:Comida, Festa,Trabalho, Viagens, Apego com a Família, e um pouco de religião para pagar os pecados.

Quem tu és?

De onde tu vens?

Para onde tu vais?”

(Malú Krelling)

Um segredo da Guerra Fria embaixo da terra na Lituânia

Se alguém me dissesse que eu estava no meio do cenário de um filme de magos e fadas – um Senhor dos Anéis ou algo assim – eu acreditaria.O interior da Lituânia é isso mesmo. Tapete verde, paisagem misteriosa e meio mágica pontilhada por vilarejos, lagos e florestas de coníferas.

O silêncio dessas terras não foi quebrado nem quando movimentos sinistros ocorriam no subterrâneo por 50 anos.

Vista aérea do Parque Nacional Žemaitijos na Lituânia
Vista aérea do Parque Nacional Žemaitijos na Lituânia: quem imaginaria que aí embaixo morava um perigo?

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A história de um símbolo nostálgico da Guerra Fria

Eles estão nos semáforos em quase todos os cruzamentos de pedestres em Berlim.

Andando em verde, paradinhos em vermelho, os Ampelmännchen são as luzinhas em formato de homenzinhos de chapéu que – quando acesas – dão a autorização pra você cruzar a rua ou não.

A verdade é que essas figuras fofas – conhecidas como Ampelmännchen – não se tratam de um capricho, mas de um plano bem pensado.

A história dos Ampelmännchen está intimamente ligada à divisão e à reunificação de Berlim.

Rebobina!

Em novembro de 1989 derrubava-se o Muro de Berlim. A imensa barreira de concreto ilhou a capitalista Berlim Ocidental no meio da Alemanha comunista (a RDA) por décadas. Sim, Berlim ficava dentro da República Democrática Alemã, o lado da Alemanha que seguia o regime comunista. E o Muro era o símbolo mais evidente e literal do que era a divisão do mundo naquela época em dois blocos: o comunista e o capitalista.

A queda daquela cortina de concreto representava um passo gigante para o fim da Guerra Fria e para reunificação de Berlim e das duas Alemanhas.

E os bonecos de trânsito que vemos hoje na Berlim unificada, ainda, têm participação especial nessa história.

O mobiliário urbano na Alemanha Oriental

Tudo começou  1961, quando o psicólogo Karl Peglau apresentou sugestões para novos símbolos de semáforo em Berlim Oriental. Sua invenção eram luzes de pedestres na forma de homenzinhos de chapéu, com nariz e até barriguinha proeminente. Nascia o Ampelmann. Ou os Ampelmännchen.

Como psicólogo, inventor engenhoso e estrategista inteligente, Karl sabia do efeito emocional que essas figuras provocariam.

É que estamos mais propensos a confiar em alguém que se parece conosco ou em quem gostamos.

Ou seja, carismáticas figuras realmente parecidas com a gente nos fariam prestar mais atenção nos sinais de trânsito. Muito melhor do que fariam os tradicionais e impessoais homenzinhos palito.

Então… a fofura dos Ampelmännchen não era capricho? Não. Era um plano bem pensado!

As sisudas autoridades da Alemanha Oriental gostaram da ideia e implantaram os sinais com o desenho de Karl.

Houve murmúrios de que o chapéu do Ampelmann fosse um agradinho às autoridades do regime comunista, uma vez que o acessório era bastante usado pelos representantes da Alemanha Oriental.

Será?

Ícones nostálgicos da Guerra Fria

Anos mais tarde, quando o Muro de Berlim já era só escombros, nasceu uma mentalidade coletiva de se livrar de um certo espírito retrógrado que acompanhava os símbolos do regime comunista.

Assim, veio a eliminação progressiva de várias referências à Alemanha Oriental. Mas já era tarde para eliminar os Ampelmännchen, que haviam cativado todos os lados do país. As pessoas agora gostavam dos homenzinhos do semáforo. E os Ampelmännchen tornaram-se figuras cultuadas.

As autoridades se renderam àquela figuras e viram nelas mais razões para perpetuá-las e apresentá-las ao Ocidente do que para destrui-las.

Teve até estudo acadêmico: uma pesquisa feita na Universidade Jacobs em Bremen (Alemanha) compara a eficácia visual dos sinais do Oriente e do Ocidente e registra que os Ampelmännchen não ocupam apenas seu lugar como um ícone nostálgico da Guerra Fria – ele realmente tem vantagem visual sobre os manjados sinais utilizados na Alemanha Ocidental.

Com a Alemanha reunificada e a eficácia dos Ampelmännchen comprovada, pareceu boa ideia instalá-los por toda a nova Berlim em vez da apagá-los.

Mais do que uma ação para a segurança no trânsito, acender os semáforos de toda Berlim com esses homenzinhos de luz foi um grande e inusitado passo para unir o que Guerra Fria havia separado.

Berlim Oriental: AmpelmannBerlin on Visualhunt.com / CC BY

 

 

Viajante Independente: LIÇÃO Nº 1

Em abril de 1917, Lênin desembarcou de um trem na Estação Finlândia, em Petrogrado (hoje, São Petersburgo), na Rússia. Após um longo exílio, ele vinha liderar uma das mais dramáticas revoluções da história mundial.

Eu também cheguei na Rússia nessa mesma Estação Finlândia. Só que quase 100 anos depois, como uma viajante independente e sem pretensões – porém tendo cometido um erro básico que me deixara sem dinheiro e na condição de, digamos, analfabeta. Sem amigos à espera e sem um só rublo no bolso para negociar, eu também estava condições de me comunicar. Havia me esquecido que, ao atravessar a fronteira finlandesa e chegar na Rússia, o alfabeto era o cirílico – um sistema alfabético de escrita sobre o qual eu não tinha o mínimo conhecimento.

Eu estava em apuros.

Eu estava viajando sozinha.

Essa história é sobre como viagens solo (e suas burradas) podem nos fortalecer para os duelos diários, além de ensinar lições muito valiosas sobre nós mesmos

Quando você for viajar sozinho:

LIÇÃO 1. VÃO TENTAR TE CONVENCER A DESISTIR

Os outros farão de tudo para te convencer a não ir adiante. Uma vez que você faz um movimento – e esse movimento é ousado – você mostra que sempre há gente se arriscando a realizar coisas apesar das dificuldades.

E isso incomoda.

É que se juntos não fizermos nada, não precisaremos lidar com nossos possíveis insucessos, não é?

Bom, foi por amor que meu irmão sugeriu que eu voltasse e fizesse ‘um concurso público’ quando um dia comuniquei que iria para a Estônia e não para o aeroporto tomar o voo de volta pra casa.

Também por amor, amigas me enviavam mensagens enquanto eu viajava ressaltando a falta que minha presença fazia. Mas quer saber? Quando voltei, a maioria delas estava ocupada lidando com a própria vida.

Mas eu me cansei mesmo foi de encontrar quem, sem motivo aparente, desencoraja o outro a desbravar fronteiras.

Mas eu me cansei mesmo foi de encontrar quem, sem motivo aparente, desencoraja o outro a desbravar fronteiras.

Certo inverno, numa troca de trens para a Escandinávia, encontrei um brasileiro recém-formado em medicina e orgulhoso dos muitos carimbos em seu passaporte. Ele havia estado na Noruega num tempo escuro e frio! Então, no momento, ele era o meu herói!  E dele eu queria todos os conselhos de viajante que pudesse conseguir. Seu assunto principal era ele mesmo e suas façanhas ao norte. E seus conselhos se concentravam nas desgraças que poderiam me abater – ser deportada e sofrer com solidão, frio e escuridão… Era hora dele voltar para o Brasil, mas queria continuar on the road .

Ele me dizia “não vá, vai ser difícil”. Mas, gente… Por quê?

TAMBÉM VI ISSO NUM FILME

No filme Livre , baseado em uma história real, Reese Whiterspoon faz o papel de Cheryl Strayed, uma solitária viajante que busca a cura para um trauma pessoal peregrinando. Ela atravessa a Pacific Crest Trail, trilha de 4265 quilômetros que cruza os Estados Unidos desde o México até o Canadá. Cheryl faz amigos no caminho. Um deles é Greg. Em certo momento, Greg quase planta na mente de Cheryl a dúvida determinante: continuar ou desistir? É incrível como ele faz isso quase sem querer. E sutilmente.

AMIGO DA ONÇA OU INOCENTE?

Os mais observadores percebem: o personagem de Greg anda lidando com os próprios monstros e frustrações durante a aventura. E não é que em determinado ponto vem realmente a notícia de que ele desistiu? Pois Cheryl continuou.

O escritor Steven Pressfield – autor do livro que deu origem ao filme Lendas da Vida (com Matt Damon e Will Smith) – nos fala sobre um inimigo que nos impede de realizar aquilo que mais desejamos.

Esse inimigo é nossa própria Resistência.

Em seu livro A Guerra da Arte , ele disseca a Resistência mostrando diversas de suas faces.

E uma das faces da Resistência é a culpa que colocamos nos outros – enquanto o que nos prejudica é o peso que damos àquilo que os outros dizem.

“Quando vemos os outros começando a viver suas vidas autênticas, ficamos loucos se não estivermos vivendo a nossa própria vida real. Os indivíduos que se sentem realizados em suas próprias vidas quase nunca criticam o próximo. Quando falam, é para oferecer encorajamento.”
(Steven Pressfield, em A Guerra da Arte)

 

Como NÃO visitar Cognac, na França

Na cidadezinha de Cognac, no sudoeste francês, o aroma da mais nobre das bebidas destiladas paira no ar. É verdade. Deu para perceber logo que saltei do trem na pequena estação ferroviária do lugar. De olfato aturdido logo de início, adentrei Cognac com uma missão: apurar para um guia de viagens transformadoras qual das destilarias de conhaque locais ofereceria o melhor tour com degustação.

E esse era o prenúncio de uma pequena confusão. 

Eu havia saltado do penúltimo trem a passar por ali antes de o país inteiro ter sua atividade nos trilhos interrompida por tempo indeterminado. Greves de trem são comuns na França. Dentro de poucas horas uma parada nacional deveria eclodir. E a recomendação do meu editor era bem clara:

“Desça na estação, faça todos os tours pelas destilarias de conhaque. Faça fotos. E se mande de lá a tempo de pegar o último trem e chegar a algum lugar onde você possa se instalar antes do caos tomar conta da França.”

Ele se referia ao caos do transporte. Mas o caos iminente era bem outro.

“DESCUBRA QUAL CASA DE CONHAQUE TEM O MELHOR TOUR.

A ordem vinha acrescida de um pedido ousado:

“Faça TODOS os tours”.

Quando se entra em Cognac, percebe-se que os muros da cidade são enegrecidos. Culpa de um fungo que se nutre dos vapores liberados pelos depósitos de conhaque, a bebida que um dia o escritor Victor Hugo chamou de “elixir dos deuses”. O tal elixir – de cujo vapor minhas narinas também já vinham se nutrindo ao primeiro contato com a cidade – foi descoberto no século 16. E sua técnica de produção foi sendo refinada ao longo do tempo.

Hoje, é assim: o vinho de seis cépages (variedade de uvas) rigorosamente regulamentadas é duas vezes destilado e levado a envelhecer por um período de 5 a 40 anos em barris de carvalho. Só então vira conhaque.  A madeira nobre é fundamental na maturação e refinação da bebida.

Todas as destilarias promovem visitas guiadas seguidas de degustação – os tais tours de conhaque que eu deveria apurar.

MAAAAASSSS…

Há muitos anos, houve um atentado envolvendo uma bomba dentro de um armário para bagagens numa uma estação de Paris. Logo, a França aboliu esse tipo de depósitos de mala. E eu, que estava em Cognac só para uma breve visita de um dia, não tinha onde guardar meus pertences.

Só me restou pedir ao garçom de um bar em frente à estação que me deixasse encostar minha mochila num cantinho por algumas horas. Com certa má vontade, ele permitiu.

Rumo ao brind…ops, trabalho!

Segui, sob olhares curiosos dos clientes do bar, para a destilaria Martell. 

Em seu tour, a mais antiga maison de conhaque do mundo, nos apresenta os principais processos de produção e abre a adega do mestre com mais de mil amostras da bebida. É a única a permitir uma espiada na empolgante linha de engarrafamento automatizada, onde os vidros são preenchidos, fechados e embalados com precisão espantosa. Antes da degustação, há um passeio por um gabarre, o tradicional barco usado antigamente para transportar barris de conhaque pelo rio Charentes.

Anotei tudinho e, de câmera em punho, fui impedida de bater fotos das instalações. Mas nem liguei porque no final da visita a degustação deixou tudo muito mais simpático e agradável.

No segundo copo esqueci a cara feia do garçom do bar. No terceiro perdoei pra sempre o tratamento ríspido da mademoiselle que baixara meu punho na hora da foto.

Definitivamente, essa tinha grandes chances de ser a CASA DE TOUR COM O MELHOR CONHAQUE.

Porta afora, segui rumo à Otard, instalada dentro de um castelo de 1494 – o Château de Cognac, onde nasceu François I, que foi rei da França durante parte do século 16.

Lá, uma turma metida em fantasias medievais me apresentou o lugar e, finalmente, me levou aos aposentos mais profundos do castelo, onde o conhaque é produzido e armazenado.

Estive rodeada por curiosidades como a desejada edição especial de 1972, limitada a 2,5 mil garrafas, e a preciosidade de cor rubi e ouro Baron Otard Extra de 1795!

Ali na Otard, as paredes estão completamente tomadas pelo tal fungo que se alimenta do vapor do elixir dos deuses. Por ano, esses minúsculos seres consomem o equivalente a 23 mil garrafas de conhaque. CERTAMENTE, isso é um tour com fungos bêbados!

Estava bem perto de encontrar o MELHOR TOUR COM CASA DE CONHAQUE.

Imaginei o editor orgulhoso de mim…


Degustei um copo pra mim e um copo pra ele.
E depois um copo para o santo que estava me ajudando na  missão.

Saí pela porta dos fundos, de onde eles despejam os visitantes depois de degustados.

Segui saltitante para a casa Rémy Martin, certa de que ia encontrar o… MELHOR CONHAQUE COM CASA DE TOUR!

Edições exclusivas e raridades que passam dos milhares de euros – mesmo que separadas dos mortais comuns por vitrines e redomas – são o trunfo do tour na Rémy Martin. A visita a essa casa que produz conhaque desde 1724 passa por corredores que expõem garrafas cheias do delicioso líquido variando do dourado vibrante até o âmbar luminoso e o mogno intenso.

Ao longo do passeio fomos seduzidos por palavras como sedoso, aveludado, acetinado – que se referem à textura de edições raríssimas, como a Centaure de Diamant, engarrafada num recipiente que imita uma pedra preciosa.

Obviamente, não foi dessa leva de raridades que provamos – eu e um animadíssimo grupo de americanos – no final do tour, quando já babávamos por um gole da tão bem afamada bebida.

Sem problemas. Entre um gole e outro brindamos à missão, que, perto do fim, me permitira encontrar na Rémy Martin a tão esperada… CASA DE MELHOR CONHAQUE COM TOUR!

Ufa! Dei um abração de agradecimento no monsieur que nos guiou e me empurrei com força sobre a pesada porta de saída, que, ops, não era tão pesada assim.

No jardim da Rémy dei uma olhada no mapa e dali tracei meu caminho até a Henessy , enquanto refletia sobre a necessidade de comprar tênis menos pesados para viagens assim.

Só em Cognac é que percebi que meu par de sapatos de viagem realmente parecia feito de chumbo.

Ainda deu tempo de chegar à porta da próxima destilaria, casa, maison de conhaque! É que fui trotando pelas ruas. Para chegar rápido. Precisei jogar os braços pra cima a fim de reivindicar minha vaga no último tour da tarde. “Permettez-moi de participer à cette visiteeeee”, gritei com meu francês bom.

Ninguém se opôs.

A Henessy tem o que parece ser o tour mais elegante de todas as casas. De gabarre (barco) e cobertos de mimos – como a degustação com canapés-evita-pileque – seguimos para o lugar onde os mais desejados e envelhecidos conhaques da marca são mantidos.

O tour que eles apelidam de “viagem ao paraíso” nos leva ao um espaço povoado por garrafas com jeito de obra de arte e de cores flutuando entre o mel e o âmbar avermelhado.

Inteiramente tomada por Cognac – guardando aquela simpática cidade aqui ó, no lado esquerdo do peito – anotei que a missão chegara ao fim. Aquele era…O MELHOR CONHAQUE COM TOUR DE CASA!

Pulei para fora do barco da Hennessy – dando Au Revoir à tripulação, que não sei bem se ria comigo ou de mim.

ADEUS

Atravessei as ruas de Cognaca apressada calçando os tênis de chumbo.

Sem fôlego, invadi o bar onde encostara e mochila. Precisei abrir os braços no ar para retribuir tamanha gentileza daquela gente boa, o que fiz bradando “Mon sac à dos, s´il vous plâit”. (significa “minha mochila, por favor, pessoal!”)

O gerente continuava com a mesma cara de poucos amigos de quando nos conhecemos naquele início de dia.  E permanecia enxugando um copo com pano de prato (?!). Deu uma queixada no ar na direção do trem, que despontava no horizonte se aproximando da estação.

Eu precisava organizar minhas ideias:

1) catar a mochila no canto;
2) jogá-la nas costas;
3) dar tchau para o garçom simpático;
4) vencer 50 metros, 2 lances de escadas e1 corredor subterrâneo;
5) acertar a plataforma;
6) acertar a seção da plataforma no qual o vagão da segunda classe estacionaria.

Tudo isso num cenário que girava.

Eu consegui.

Estatelei-me no banco do trem e caí no sono.

Fui acordada tempos depois, não me lembro onde, pelo homem do chapéu – aquele que passa recolhendo os bilhetes e cutuca nosso ombro quando estamos dormindo.

Sonolenta, me ajeitei para alcançar meu passe de trem e o que encontrei preso ao meu punho? A câmera fotográfica. E uma única foto:

 

Pois é. Esqueci de fazer as fotos.

 

Touros na espanha

Touro à vista!

Essa história não é só sobre os míticos touros espanhóis, mas sobre nossa luta para largar a telinha do celular

É ele! É ele! De olhos vidrados na janela do ônibus, em algum lugar entre Valladolid e Valência, na Espanha,  notei ao longe a figura que há tempos eu buscava.

Não dava pra gritar “motorista, eu vou descer!”

Assim, num golpe rápido saquei a câmera e registrei um dos touros solitários que se elevam como sombras imponentes no horizonte espanhol. Eu finalmente via um.

Os touros são a estampa mais óbvia dos souvenires de viagem do país.

Mas você já viu um desses com os próprios olhos? Quem são eles? O que fazem lá?

Polêmica

Nos anos 80, painéis publicitários que remetem à tradição espanhola mais polêmica – as touradas – foram fincados pelos campos da Espanha fazendo propaganda do jerez Osborne.

Jerez é um vinho fortificado típico do país.

E os painéis da Osborne, recortados em formato de touro, podiam ser vistos de longe – especialmente por quem viaja pelas rodovias.

Acontece que, por volta de 1990, a Espanha passou a proibir grandes cartazes comerciais em suas estradas nacionais. Assim que as autoridades ordenaram botar abaixo os chifrudos gigantes da Osborne, parte da população que havia se afeiçoado à ideia, protestou.

Não houve de jeito de derrubar os touros. Pelo menos não todos eles…

Os que restaram de pé tiveram as referências à propaganda removidas. E pintados de negro.

Permaneceram, então, espalhados, belamente fincados pelas terras espanholas.

Eu vi! E vi porque eu estava olhando o mundo lá fora.